segunda-feira, março 14, 2011
domingo, fevereiro 01, 2009
quinta-feira, janeiro 22, 2009
quarta-feira, janeiro 21, 2009
quarta-feira, janeiro 14, 2009
terça-feira, janeiro 13, 2009
segunda-feira, janeiro 12, 2009
Larra y Albéniz protagonistas de las conmemoraciones culturales de 2009

terça-feira, janeiro 06, 2009
António Lobo Antunes - Já escrevi isto amanhã
Era uma escola pequena, a minha, com um professor tirânico que puxava pêlos do nariz: ramal da Beira Baixa, afluentes da margem esquerda do Tejo, o nome predicativo do sujeito.
- Diz o nome predicativo do sujeito, idiota
e nós lá gaguejávamos o nome predicativo do sujeito, cheios de dúvidas, a hesitar. O professor escolhia um pêlo, desprezando-nos
- Nunca hás-de ser ninguém na vida e o facto do nome predicativo do sujeito me impedir de ser alguém na vida preocupava-me. Que raio de importância tão grande o nome predicativo do sujeito tem? Ou o ramal da Beira Baixa? Ou os afluentes da margem esquerda do Tejo? Meu Deus a quantidade de coisas que existem entre mim e o meu futuro. Outras frustrações: não usar óculos, nunca ter partido uma perna.
Aparelho para os dentes sim, o que me compensava um bocadinho.
E uma funda para a hérnia, mas isso era um adereço invisível, sobretudo comparado com uma perna em gesso, com os dedos do pé de fora, de unhas sujas de branco. E canadianas, que sorte. E coxear, que felicidade. E a maravilha de poder dar com elas num rabo a jeito. E autografarem-me o gesso. Olha, uma mosca pequenina agora, à volta da minha mão. Igual às grandes mas minúscula. Poisada na caneca. Poisada no tampo. Poisada na manga do blusão.
O mapa ao lado do quadro, com os países de cores diferentes. A Alemanha amarela, a Noruega roxa. Portugal não me recordo. Uma bolinha com um ponto ao centro em Lisboa, uma bolinha menor, com um ponto também ao centro, no Porto. O mar azul. Ilhas e ilhas: os Açores, Madagáscar.
A Indonésia dúzias. O professor
Estás a olhar para ontem, idiota?
E é verdade, estou a olhar para ontem, sempre olhei para ontem. Até o amanhã é ontem às vezes. Charlie Parker interrompeu uma vez uma gravação, atirando com o saxofone, a gritar Já toquei isto amanhã e ninguém foi capaz de convencê-lo a continuar. Como eu o compreendo, como às vezes sinto Já escrevi isto amanhã e rasgo tudo. Um trabalho difícil, quase tão difícil como viver. Acho que não sei viver. Acho que não sei viver? Acho que não sei viver como os outros vivem. Que dias os meus, repletos de surpresas, de mistérios. De espantos.
Sou um saloio: não há montra de loja que não me encante, sobretudo as lojinhas minúsculas de certos bairros, mercearias, roupas, brinquedos.
Apetece-me logo comprar vassouras, aipo, um macaco de corda, a camisa mais feia que descobrir na montra. A beleza das coisas feias fascina-me. O seu ar de desamparo, coitadas. A cinquenta metros da casa dos meus pais existia um estabelecimento de vestidos e artigos correlativos chamado Marijú. O Paraíso deve ser no género da Marijú, com empregadas a cheirarem bem que me faziam cócegas na alma. Não se calcula o que a Marijú alegrou a minha infância. A Marijú, do meu ponto de vista, era o centro do quarteirão. Para indignação minha a minha mãe considerava a Marijú o supra-sumo do horrível, a ignorante. Em matéria de gosto os meus pais, aliás, deixavam imenso a desejar: detestavam quadros com gatinhos a saírem de botas velhas, palhaços de porcelana a chorarem, dálmatas cromados em tamanho natural. Onde se viu tanta cegueira? Serras do sistema galaico-duriense: Peneda, Soajo, Gerez, Larouco, Falperra, etc. Ficou tudo na minha cabeça graças ao medo do professor, conhecimentos utilíssimos, até ele apreciava a Marijú: tenho de concordar que em espírito artístico superava os meus pais. O problema era o nome predicativo do sujeito. Sem o nome predicativo do sujeito a minha infância teria sido perfeita. Pretéritos, pronomes, tabuada. E os olhos de Charlie Parker tristíssimos nas fotografias. Escrever como ele toca. Vá, António, levanta-te do papel com as palavras: quem disse que não eras capaz, és capaz, levanta-te do papel com as palavras. Fecha os olhos e elas saem sozinhas. As palavras são notas, repara. Não penses em nada, abandona-te. O mundo inteiro está dentro de ti. Anteontem almoçaste com os teus camaradas.
Faltava o Zé
(duas fotografias dele à minha frente)
estamos amputados do Zé, mas que milagre de sintonia entre nós desde os confins de Angola. Que nenhum de vocês se atreva a morrer como o Zé, ouviram? Primeiro mato-vos outra vez e a seguir ralho-vos. Não quero ficar mais pobre ainda. O Zé fardado de coronel na participação do jornal, com versos de Goethe por baixo. A propósito: nunca falamos de Goethe, pois não?
A Marijú. O ramal da Beira Baixa. A primeira vez que vi uma mulher nua e me apeteceu ajoelhar: não tocar-lhe, não beijá-la, ajoelhar apenas. E ficar que tempos assim.
O único milagre que conheço. O professor
- Estás a olhar para ontem?
e estou de facto. Neste preciso momento, senhor professor, só me apetece olhar para ontem.
segunda-feira, janeiro 05, 2009
Quando o Sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa
Ao longo de úa praia deleitosa,
Vou na minha inimiga imaginando.
Aqui a vi os cabelos concertando;
Ali, co a mão na face, tão fermosa;
Aqui falando alegre, ali cuidosa;
Agora estando queda, agora andando.
Aqui esteve sentada, ali me viu,
Erguendo aqueles olhos tão isentos;
Aqui movida um pouco, ali segura;
Aqui se entristeceu, ali se riu...
Enfim, nestes cansados pensamentos,
Passo esta vida vã, que sempre dura.
Busque Amor novas artes, novo engenho
Pera matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,
Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.
Luís de Camões
quinta-feira, dezembro 25, 2008
NANAS DE LA CEBOLLA - Miguel Hernández
( Dedicadas a su hijo, a raíz de recibir una carta de su mujer, en la que le decía que no comía más que pan: y cebolla) .
La cebolla es escarcha
cerrada y pobre.
Escarcha de tus días
y de mis noches.
Hambre y cebolla,
hielo negro y escarcha
grande y redonda.
En la cuna del hambre
mi niño estaba.
Con sangre de cebolla
se amamantaba.
Pero tu sangre,
escarchada de azúcar,
cebolla y hambre.
Una mujer morena
resuelta en luna
se derrama hilo a hilo
sobre la cuna.
Ríete, niño,
que te traigo la luna
cuando es preciso.
Alondra de mi casa,
ríete mucho.
Es tu risa en tus ojos
la luz del mundo.
Ríete tanto
que mi alma al oírte
bata el espacio.
Tu risa me hace libre,
me pone alas.
Soledades me quita,
cárcel me arranca.
Boca que vuela,
corazón que en tus labios
relampaguea.
Es tu risa la espada
más victoriosa,
vencedor de las flores
y las alondras.
Rival del sol.
Porvenir de mis huesos
y de mi amor.
La carne aleteante,
súbito el párpado,
el vivir como nunca
coloreado.
¡Cuánto jilguero
se remonta, aletea,
desde tu cuerpo!
Desperté de ser niño.
Nunca despiertes.
Triste llevo la boca:
ríete siempre.
Siempre en la cuna,
defendiendo la risa
pluma por pluma.
Ser de vuelo tan alto,
tan extendido,
que tu carne parece
cielo cernido.
¡Si yo pudiera
remontarme al origen
de tu carrera!
Al octavo mes ríes
con cinco azahares.
Con cinco diminutas
ferocidades.
Con cinco dientes
como cinco jazmines
adolescentes.
Frontera de los besos
serán mañana,
cuando en la dentadura
sientas un arma.
Sientas un fuego
correr dientes abajo
buscando el centro.
Vuela niño en la doble
luna del pecho.
Él, triste de cebolla.
Tú, satisfecho.
No te derrumbes.
No sepas lo que pasa
ni lo que ocurre.
A Selva 75 anos - Actas do Congresso Internacional

Selva 75 Anos -- Actas do Congresso Internacional (2005), Ossela, Centro de Estudos Ferreira de Castro, 2007
Comunicações:
Robério Braga, «O Amazonas ao tempo de Ferreira de Castro»;
Eugénio Lisboa, «A Selva: no coração das trevas»;
Ricardo António Alves, «A Selva como expressão das ideias libertárias de Ferreira de Castro»;
Karl Heinz Delille, «Casa Viejas -- Um episódio da recepção alemã de Ferreira de Castro»;
Olímpia R. Santana, «A Selva -- Após a ruptura com o silêncio»;
Bernard Emery, «O "negro" dos Camarões»;
Artur Anselmo, «Aspectos do indianismo na obra de Ferreira de Castro»;
Reinaldo F. Silva, «A recepção anglófona de A Selva e de outras obras de Ferreira de Castro»;
Silas Granjo, «Notas para uma história textual de A Selva»;
Ivone Bastos Ferreira, «A primeira edição brasileira de A Selva ou de como se critica sem ler e se põe em causa as virtudes das mulheres de Faro»;
João Minhoto Marques, «Representações da utopia em A Selva»;
Daniel Aranjo, «Le paysage dans A Selva»;
Margarida Pandeirada, «A paisagem humanizada em A Selva de Ferreira de Castro»;
Joaquim Correia, «Originalidade e perenidade artística de A Selva»;
Miguel Real, «Naturalismo e realismo em A Selva»;
Liliana Dias Carvalho, «Paisagens sem rosto -- Para o estudo da primeira edição ilustrada de A Selva»;
Antônio Dimas, «Dois europeus e uma Amazônia: Júlio Verne e Ferreira de Castro»;
José Alonso T. Freire, «A Selva e a literatura da Amazônia»;
Manuel Pires Bastos, «Dois humanistas oliveirenses no Amazonas: Caetano Brandão (século XVIII) e Ferreira de Castro(século XX)»;
Neide Gondim, «A contribuição portuguesa para a literatura do Amazonas»;
Vítor Pena Viçoso, «O simbolismo da Amazónia em Ferreira de Castro e Carlos de Oliveira»;
Beatriz Berrini, «Breves reflexões sobre A Selva»;
António Cândido Franco, «A Selva e O Instinto Supremo»;
Elcio Lucas de Oliveira, «A paradoxal atualidade de A Selva»;
Carlos Jorge F. Jorge, «A descrição como referência poética e documentário n'A Selva de Ferreira de Castro»;
Márcio Souza, «A primeira versão de A Selva no cinema»;
Liliana Dias Carvalho, «O utópico convívio entre a câmara e a pena -- A Selva entre Ferreira de Castro e Leonel Vieira»;
Óscar Cruz, «A produção de A Selva de Leonel Vieira».
Manoel de Oliveira - 100 anos

João Bénard da Costa: Singularidade de um cineasta português
11.12.2008
Na arte do cinematógrafo, que conta apenas 113 anos, Manoel de Oliveira é o primeiro criador a celebrar 100 anos, em actividade. Uma actividade iniciada em 1929, há quase 80 anos, tinha Manoel de Oliveira apenas 20. Foi nesse ano que começou a rodar Douro, Faina Fluvial apresentado publicamente, em versão muda, a 21 de Setembro de 1931, no mesmo dia em que morreu o nosso primeiro cineasta - Aurélio da Paz dos Reis - e na mesma sala onde, muitos anos mais tarde, a então chamada Cinemateca Nacional efectuou as suas primeiras sessões.
Mas a singularidade de Manoel de Oliveira vai muito para além da sua extraordinária longevidade e da sua extraordinária criatividade.Manoel de Oliveira é, indiscutivelmente, o mais célebre realizador português e o reconhecimento da sua obra ultrapassa em muito as nossas fronteiras, sendo, também indiscutivelmente, um dos nossos cinco ou seis criadores mundialmente consagrados e sendo o nosso cineasta internacionalmente mais famoso.Aqui, atenção que os portugueses não costumam tratar bem aqueles que "ousaram mais ser que a outra gente" para citar um verso de Sophia. Detractores, que lhe não faltam, como nunca faltaram em Portugal aos poucos que tiveram ou têm a grandeza dele, objectarão que esse reconhecimento internacional se reduz a um escasso número de conhecedores, já que propriamente Oliveira não é uma celebridade popular, não é Amália nem Cristiano Ronaldo. Não é também um ídolo cinematográfico das multidões, como o foi Chaplin ou como o é Woody Allen. Não o foi nem nunca pretendeu sê-lo.O cinema, segundo uma frase célebre, é uma arte, mas é também uma indústria. Em termos de indústria, Manoel de Oliveira não dirá nada a ninguém. Para ele, o cinema sempre foi arte, como o foi para Bresson ou como é para Jean-Marie Straub. É no domínio da arte do cinema, o único que lhe interessa, que Oliveira é mundialmente reconhecido como um dos maiores, para alguns até como o maior cineasta vivo e em actividade.Situação paradoxal. Num país da Europa ocidental com a mais pequena produção e com mais lentos começos cinematográficos, nada fazia prever, nesses longínquos anos 20, que em Portugal surgiria um dos nomes maiores da chamada sétima arte. Até ele, em Portugal, o cinema de ficção tinha sido obra de estrangeiros ou estrangeirados e só na geração dele surgiram homens com outras ambições. Leitão de Barros por exemplo, assinou os seus melhores filmes à época em que Oliveira começou. Mas os outros tornaram-se casos de memória, mesmo que de boa memória.Oliveira ultrapassou os caminhos e já todos se tinham retirado ou tinham morrido quando Oliveira alcançou fama mundial. Pacientemente, após muitas interrupções e muitos anos de silêncio, aguardou a sua hora, que alguns, como Bazin ou Langlois, previram nos anos 50 ou 60, mas que só chegou aos festivais e às primeiras páginas da imprensa generalista ou especializada nos anos 70, ao tempo da chamada "tetralogia dos amores frustrados", sobretudo com Amor de Perdição (1978) e Francisca (1981).O milagre Oliveira começou quando o realizador tinha 70 ou mais anos, começou quando a grande maioria dos grandes cineastas terminou a sua obra.Algumas características exteriores (interiores também, mas isso era outra conversa que não cabe neste texto) apuseram-se ao nome de Oliveira: filmes de enorme duração, filmes estáticos com a câmara fixa em planos com o máximo de duração possível. A lenda não corresponde à realidade. Das suas 30 longas-metragens, incluindo a que está a rodar neste momento, só três (Amor de Perdição, Le Soulier de Satin e Vale Abraão) ultrapassam as três horas de duração.Se a câmara, para ele, não é uma borboleta - voa aqui, voa acolá -, o movimento e o tempo, na obra de Oliveira, são coisas muito diferentes e a incessante movimentação das personagens é a acção que tanto o acusam de não ter. Mas a arte do cinema não foi feita para se olhar, foi feita para se ver, embora poucos saibam ver como Oliveira o sabe. Quem o acompanhar não tem descanso nem parança, como ele próprio a não teve desde os anos 80.Agustina escreveu: "A turbulência das nossas reacções humanas faz com que a solidão nos escape e que o encontro com Manoel de Oliveira seja difícil. Queremos sujeitá-lo a um padrão de vida, a uma sequência de palpites sobre a história das pessoas que não se coadunam com a obra dum artista como ele. (...) a sua personalidade única parece-me fazer parte da integral verdade da criação." Não sei dizer melhor.Quer Oliveira se debruce sobre o mistério da mulher, quer interrogue a nossa história - história do país em que nasceu, história da humanidade que inventou a arte - quer aborde as relações entre a literatura, o teatro, a pintura e o cinema, o que predomina na sua obra singular é a palavra visual, na sua própria expressão, a expressão que melhor me parece marcar a densidade do que fez.Para mim, a história da arte ou a arte da história nestes últimos dois séculos, em Portugal, leva dois nomes: Pessoa e Oliveira. É esta a sua verdade, é esta a sua grandeza. Singular? Singularíssima, como todas as obras que não têm paralelo com nenhuma outra.Não a merecíamos. Mas tivemo-la e temo-la. E foi dita em português e foi vista de Portugal.
quarta-feira, dezembro 17, 2008
Antonio Machado (1875-1939)
Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.
O Regresso, ainda em 2008...
quarta-feira, maio 30, 2007
Ferreira de Castro e Roberto Nobre - A Epopeia do Trabalho
In “A Epopeia do Trabalho”, “Os Escritores”
Do «Pórtico» de A LÃ E A NEVE (1947), Ferreira de Castro

No começo do Verão, antes de demandar os altos da serra, ovelhas e carneiros deixavam, em poder dos donos, a sua capa de Inverno. E começava a tecelagem. O homem movia, com os pés, a tosca construção de madeira, enquanto as suas mãos iam operando o milagre de transformar a grosseira matéria em forte tecido. Constituía o acto uma indústria doméstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a serra não dava, nessas recuadas eras, mais do que lã e centeio.
[...]
Um dia, tudo se revolucionou. Já não se tratava de melhores debuxos, de mais gratas cores, mas de coisa mais profunda -- da produção automática. Lá nas nevoentas terras inglesas o padre Cartwright inventara o tear mecânico. A água fazendo girar grandes rodas, começara a produzir o movimento dado, até aí, pelos pés do homem. Mas continuam a ser precisos os homens junto das novas máquinas.
[...]
Os homens passavam os dias e as noites dentro das fábricas só saindo aos domingos, para esquecer o cárcere. Já não viam as ovelhas, nem ouviam os melancólicos tanger dos seus chocalhos nos pendores da serra, ao crepúsculo; viam apenas a sua lã, lã que eles desensugavam, cardavam, penteavam, fiavam e teciam, lã por toda a parte.
[...] No século XX, mais do que sons de flautas pastoris descendo do alto da serra para os vales, subiam dos vales para o alto da serra queixumes, protestos, rumores dos homens que, às vezes, se uniam e reivindicavam um pouco mais de pão.
A resposta do GAVE...
Em declarações à agência Lusa, o director do Gabinete de Avaliação Educacional, Carlos Pinto Ferreira, explicou que a prova de Língua Portuguesa dos 4º e 6º anos testa a compreensão de texto, o conhecimento da língua e a expressão escrita, competências avaliadas em separado para permitir aos serviços da tutela identificar as lacunas dos alunos em cada uma."Não faz sentido penalizar a incorrecção ortográfica na primeira parte, quando o que se pretende perceber é se o aluno compreendeu ou não o texto. Se uma dessas perguntas tiver zero porque tem um erro não conseguimos avaliar se o aluno percebeu o texto", disse o responsável, adiantando que, "obviamente", os erros ortográficos, a incorrecção gramatical e a má construção frásica são avaliados e penalizados nas restantes partes da prova.Segundo Carlos Pinto Ferreira, trata-se de "uma técnica de avaliação" que permitirá ao Ministério da Educação elaborar relatórios para cada escola, nos quais serão identificadas as principais dificuldades dos alunos em cada uma das competências e delineadas estratégias diferentes para as combater. "Com esta técnica, poderemos vir a concluir que os alunos percebem os textos e a competência de interpretação está a ser bem adquirida, mas que há lacunas graves ao nível da escrita", exemplificou, lembrando que o objectivo das provas de aferição não é avaliar os alunos mas fazer um diagnóstico do sistema de ensino. O "Diário de Notícias" noticia hoje que "os erros de ortografia não contam para a avaliação", escrevendo que "erros de construção frásica, grafia ou de uso de convenções não são para descontar" nas referidas provas, informação entretanto desmentida "liminarmente" pelo Ministério da Educação.Cerca de 250 mil alunos dos 4º e 6º anos realizaram na semana passada provas de aferição a Língua Portuguesa e a Matemática, sendo os resultados, pela primeira vez, devolvidos às escolas e afixados em pauta, a 21 de Junho.Os serviços do Ministério da Educação entregarão em Outubro 30 mil relatórios por turma e por escola, a partir dos quais serão definidos planos de acção com medidas para melhorar o desempenho a Língua Portuguesa e a Matemática.
terça-feira, maio 29, 2007
Uma Blogantologia X - Luís de Camões (1524?-1580)
Oh! como se me alonga, de ano em ano,
a peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
este meu breve e vão discurso humano!
Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
perde-se-me um remédio, que inda tinha;
se por experiência se adivinha,
qualquer grande esperança é grande engano.
Corro após este bem que não se alcança;
no meio do caminho me falece,
mil vezes caio, e perco a confiança.
Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
se os olhos ergo a ver se inda parece,
da vista se me perde e da esperança.
Luís de Camões
Uma Blogantologia IX - Alexandre O`Neill
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
Nesta curva tão terna e lancinante que vai ser
que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti
Alexandre O'Neill
Retirado do Bibliotequices...
Em tempos era moda mandar os meninos mal comportados para a biblioteca. Uma situação inadequada e inútil quer para o aluno, quer para as actividades e objectivos da biblioteca, associando a biblioteca a algo de desagradável.É uma opção que ainda não foi erradicada e ainda é utilizada como forma de alguns professores "aliviarem os problemas" da sala de aula, esperando-se que na biblioteca esteja lá alguém para "acompanhar" o aluno.Algumas escolas ainda falam num ideal "plano de compensação" a executar na biblioteca pelo aluno "convidado a sair" da sala de aula, mas é algo pouco exequível em casos de alunos expulsos da sala de aula e no meio de momentos de maior exaltação das partes.É ainda óbvio que ninguém faz um plano alternativo de trabalho em segundos! Por essas e por outras até há quem prefira ir para a biblioteca do que ficar na sala de aula, onde até pode ter prioridade na utilização dos computadores: um prémio afinal!Mas o assunto de hoje não são os castigos na biblioteca a alunos mas sim a professores! Não propriamente a castigos reais mas à forma como se percepciona o trabalho na biblioteca pelo público.Pelo menos a advogada do professor António Charrua (no centro da polémica do momento na DREN) parece achar que a biblioteca é um local de castigo para professores:
« O professor recorreu para o Tribunal Administrativo do Porto. E 12 dias depois foi notificado de que tinha sido "autorizada a cessação da sua requisição da DREN". Charrua regressou à Escola Carolina Michäelis (Porto), onde foi colocado na biblioteca. "É uma maneira de punir. Uma forma encapotada de processo disciplinar", diz a advogada Elisabete Fernandes, admitindo impugnar a cessação da requisição» http://jn.sapo.pt/2007/05/22/primeiro_plano/piada_a_socrates_igual_a_anedota_dem.html
sábado, setembro 16, 2006
quinta-feira, agosto 24, 2006
Uma Blogantologia VIII - Manuel Bandeira
I
A sala em espelhos brilha
Com lustres de dez mil velas.
Miríades de rodelas
Multicores - maravilha! -
Torvelhinham no ar que alaga
O cloretilo e se toma
Daquele mesclado aroma
De carnes e de bisnaga.
E rodam mais que confete,
Em farândolas quebradas,
cabeças desassisadas
Por Colombina ou Pierrete
II
Pierrot entra em salto súbito.
Upa! Que força o levanta?
E enquanto a turba se espanta,
Ei-lo se roja em decúbito.
A tez, antes melancólica,
Brilha. A cara careteia.
Canta. Toca. E com tal veia,
com tanta paixão diabólica,
Tanta, que se lhe ensangüentam
Os dedos. Fibra por fibra,
Toda a sua essência vibra
Nas cordas que se arrebentam.
III
Seu alaúde de plátano
Milagre é que não se quebre.
E a sua fronte arde em febre,
Ai dele! e os cuidados matam-no.
Ai dele! e essa alegria,
Aquelas canções, aquele
Surto não é mais, ai dele!
Do que uma imensa ironia.
Fazendo à cantiga louca
Dolorido contracanto,
Por dentro borbulha o pranto
Como outra voz de outra boca:
IV
- "Negaste a pele macia
À minha linda paixão
E irás entregá-la um dia
Aos feios vermes do chão...
"Fiz por ver se te podia
Amolecer - e não pude!
Em vão pela noite fria
Devasto o meu alaúde...
"Minha paz, minha alegria,
Minha coragem, roubaste-mas...
E hoje a minh'alma sombria
É como um poço de lástimas..."
V
Corre após a amada esquiva.
Procura o precário ensejo
De matar o seu desejo
Numa carícia furtiva.
E encontrando-o Colombina,
Se lhe dá, lesta, . socapa,
Em vez de beijo um tapa,
O pobre rosto ilumina-se-lhe!
Ele que estava de rastros,
Pula, e tão alto se eleva,
Como se fosse na treva
Romper a esfera dos astros!...
Uma Blogantologia VII - Manuel Bandeira

Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
quarta-feira, agosto 23, 2006
Uma Blogantologia VI - João Roiz de Castel-Branco
Senhora, partem tão tristes
Meus olhos por vós, meu bem.
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saudosos,
Tão doentes da partida,
Tão cansados, tão chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes
Tão fora de esperar bem.
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.
Blogoletras I - Suzanne, Leonard Cohen
Suzanne takes you down to her place by the river
You can hear the boats go by
You can spend the night forever
And you know that she's half crazy
And that's why you want to be there
And she feeds you tea and oranges
That came all the way from China
And just when you want to tell her
That you have no love to give her
She gets you on her wavelength
And lets the river answer
That you've always been her lover
And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you think you maybe trust her
'Cause she's touched your perfect body with her mind
And Jesus was a sailor
When he walked upon the water
And he spent a long time watching
From a lonely wooden tower
And when He knew for certain
Only drowning men could se Him
He said "All men shall be sailors,
Then, until the sea shall free them"
But He Himself was broken
Long before the sky would open
Forsaken almost human,
He sank beneath your wisdom like a stone
And you want to travel with Him
And you want to travel blind
And you think you maybe trust Him
For He's touched your perfect body with His mind
Suzanne takes you down to her place by the river
You can hear the boats go by
You can spend the night forever
And the sun pours down like honey
On our lady of the harbor
And she shows you where to look
A mid the garbage and the flowers
There are heroes in the seaweed
There are children in the morning
They are leaning out for love
And they will lean that way for ever
While Suzanne holds her mirror
And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you think you maybe trust her
'Cause you've touched her perfect body with your mind
Uma Blogantologia V -PRIMEIRO MANIFESTO DADÁ
Hugo Ball
Dadá é uma nova tendência da arte. Percebe-se que o é porque, sendo até agora desconhecido, amanhã toda a Zurique vai falar dele. Dadá vem do dicionário. É bestialmente simples. Em francês quer dizer "cavalo de pau". Em alemão: "Não me chateies, faz favor, adeus, até à próxima!" Em romeno: "Certamente, claro, tem toda a razão, assim é. Sim, senhor, realmente. Já tratamos disso." E assim por diante.
Uma palavra internacional. Apenas uma palavra e uma palavra como movimento. É simplesmente bestial. Ao fazer dela uma tendência da arte, é claro que vamos arranjar complicações. Psicologia Dadá, literatura Dadá, burguesia Dadá e vós, excelentíssimo poeta, que sempre poetastes com palavras, mas nunca a palavra propriamente dita. Guerra mundial Dadá que nunca mais acaba, revolução Dadá que nunca mais começa. Dadá, vós, amigos e Também poetas, queridíssimos Evangelistas. Dadá Tzara, Dadá Huelsenbeck, Dadá m'Dadá, Dadá mhm'Dadá, Dadá Hue, Dadá Tza.
Como conquistar a eterna bemaventurança? Dizendo Dadá. Como ser célebre? Dizendo Dadá. Com nobre gesto e maneiras finas. Até à loucura, até perder a consciência. Como desfazer-nos de tudo o que é enguia e dia-a-dia, de tudo o que é simpático e linfático, de tudo o que é moralizado, animalizado, enfeitado? Dizendo Dadá. Dadá é a alma-do-mundo, Dadá é o Coiso, Dadá é o melhor sabão-de-leite-de-lírio do mundo. Dadá Senhor Rubiner, Dadá Senhor Korrodi, Dadá Senhor Anastasius Lilienstein.
Quer dizer, em alemão: a hospitalidade da Suíça é incomparável, e em estética tudo depende da norma.
Leio versos que não pretendem menos que isto: dispensar a linguagem. Dadá Johann Fuchsgang Goethe. Dadá Stendhal. Dadá Buda, Dalai Lama, Dadá m'Dadá, Dadá m'Dadá, Dadá mhm'Dadá. Tudo depende da ligação e de esta ser um pouco interrompida. Não quero nenhuma palavra que tenha sido descoberta por outrem. Todas as palavras foram descobertas pelos outros. Quero a minha própria asneira, e vogais e consoantes também que lhe correspondam. Se uma vibração mede sete centímetros, quero palavras que meçam precisamente sete centímetros. As palavras do senhor Silva só medem dois centímetros e meio.
Assim podemos ver perfeitamente como surge a linguagem articulada. Pura e simplesmente deixo cair os sons. Surgem palavras, ombros de palavras; pernas, braços, mãos de palavras. Au, oi, u. Não devemos deixar surgir muitas palavras. Um verso é a oportunidade de dispensarmos palavras e linguagem. Essa maldita linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas gastaram. A palavra, quero-a quando acaba e quando começa.
Cada coisa tem a sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em coisa. Porque é que a árvore não há-de chamar-se plupluch e pluplubach depois da chuva? E porque é que raio há-de chamar-se seja o que for? Havemos de pendurar a boca nisso? A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a palavra, meus senhores, é uma questão pública de suprema importância.
segunda-feira, agosto 21, 2006
Uma Blogantologia IV - Alberto de Lacerda
No firme azul do desdobrado céu
Decantarei a mínima magia
Das sensações mais puras, melodia
Da minha infância, onde era apenas Eu.
Da realidade nua desce um véu
Que, já sem mar, apenas maresia,
me vem tecer aquela chuva fria,
Que prende esta janela ao claro céu.
Despido o ouropel desvalioso,
Já não apenas servo, mas o Rei
Da luz da minha lâmpada nomeia,
Assim procuro o centro misterioso
Do mundo que hoje habito, onde serei
Concêntrica expressão da vida inteira.
Uma Blogantologia III - Erich Fromm
Blogantologia II - James Murphy
Travels in Portugal, 1795
Blogantologia - Uma Explicação
domingo, agosto 20, 2006
Uma Blogantologia I - Bocage
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Incapaz de assistir num só terreno,
Devoto incensador de mil deidades
Eis Bocage em quem luz algum talento;
De cerúleo gabão não bem coberto,
Dos esburgados peitos quase aberto,
Pede às moças ternura, e dão-lhe motes!
Ponderai da Fortuna a variedade
E se entre versos mil de sentimento
Duarte Belo, O Vento Sobre a Terra
sábado, agosto 19, 2006
Roberto Nobre e um artigo sobre cinema
As imagens têm voz...
por ROBERTO NOBRE
À estética da mais retardatária das artes, a sétima, falta-lhe um passado longo e dignificante que lhe dê austero prestígio e nobreza. Foi, quando nasceu, considerada como que apócrifa, irmã espúria das outras geniais 6 artes, a maioria destas com milénios de glória. Nascera na idade mecânica. Vivia de apropriações que fazia às outras artes. Anatole chamou aos cinemas «antros escuros donde se sai com vergonha de ser homem» — e Anatole não era um pudico moralista, nem, decerto, lhe deram, então, nenhum conhaque inebriante que se parecesse ao ardor escaldante de «Le Diable au corps» ou «Les Amants». Bergson disse em 1914: «Fui ao cinema. Nada deve deixar o filósofo indiferente» — como quem se desculpa, pois nada, nem mesmo essa cousa «degradante », que é o cinema, deve ser indiferente ao filósofo. Depois, alguns intelectuais leram complacentemente o que diziam os Delluc, os Canudo e outros pioneiros do ensaísmo da nova estética. Os futuristas terçaram armas pela nova arte, Marinetti, Apollinaire, Cocteau. Vouillermoz comparou os seus ritmos aos da música, de que era autorizado crítico. René Schwob, em 1929, procurou, com audácia, surpreender a filosofia da originalidade da nova arte. Esta, porém, baseava-se, disse, exactamente em ela ser muda. O seu livro, de resto um ensaio muito belo de crítica de arte, chamou-se mesmo «Uma Melodia Silenciosa». Pelo seu ritmo de plástica em movimento, transmitia aos olhos uma melodia de sensibilidade paralela à dos sons musicais aos ouvidos. Não deveria ser mesquinhamente directa, «fotográfica», narrativa, mas alusiva, como o são a música ou a poesia. Assim, a sua razão de ser era, como todas as artes, de ordem subjectiva. No entanto, sempre oposta ao palco. Schwob asseverou mesmo: «o cinema não vale senão pela sua oposição irredutível ao teatro». Bernard Shaw foi, como Anatole, inimigo confessado dos tais «antros escuros». Na palavra, escrita ou falada, é que estava o génio humano. O cinema de então era formado por imagens intercaladas de legendas. Ele, portanto, só seria suportável quando... constituído unicamente por esses letreiros! Parecia uma «boutade», mas ele era sincero no seu desprezo.
Tivemos, então, os estetas do cinema «puro», os grandes artistas como Vertoff, Ruttmann, etc., para os quais a independência do cinema se degradava quando ele descia» a contar uma historieta. Isso era para os romances, para o palco. Deveria ser apenas uma sinfonia plástica.
Mas o advento do cinema sonoro chegou e teve o seu êxito total: deixou de haver cinema mudo. As restrições de Eisenstein e até a heróica obstinação de mudez, mantida longamente por Chaplin, foram vencidas. Bernard Shaw, quando o cinema se tornou canoro e palrador, deixou, finalmente, adaptar as suas obras. Asquit e Leslie Howard fizeram de «Pigmaleão» um êxito memorável. E ele pôde dizer, logicamente, que não tinha mudado. O cinema é que viera ao seu encontro.
Irrompeu, então, uma enxurrada de mesquinho teatro filmado, horrível, palavroso, idiota. Os doutrinadores de teatro rejubilaram. Mesmo os mais lúcidos, como o grande crítico português de teatro Eduardo Scarlatti, reivindicaram uma vez mais a primazia do palco, chamando a esse cinema «teatro mecanizado». Scarlatti afirmou mesmo: «o cinema não é mais que a satisfação do espírito sem necessidade de cultura. É a sucessão de imagens pelo mecanismo eléctrico, em vez de mecanismo intelectual».
Serenada a avalanche (e esquecendo propositadamente a boa influência que teve o choque da «improvisação» do neo-realismo italiano com o demasiado «tecnicismo de estúdio» de Hollywood) surgiu um outro cinema sonoro digno de ser observado e meditado, que veio tornar oportuno, uma vez que nos passou a dar belos filmes magnífica (embora imensamente) dialogados, que se reveja o problema de termos estado, ou não, errados quando buscávamos nos valores plásticos das imagens em movimento e no ritmo do seu alternamento a razão de ser da arte do cinema.
Quando surgiram os fonofilmes, foi René Clair, creio, quem melhor pôs o problema — o cinema não deveria servir os diálogos, portanto o teatro, mas utilizar a dicção, a música, os ruídos para sublinhar, para completar a linguagem do cinema «como cinema». Eisenstein surgiu com o «contraponto» sonoro, como complemento alusivo e não sincrónico. Mas, depois disso, muita água correu sob as pontes do Sena. Apareceu por automática decantação, foi amadurecendo a actual «terceira via», em que o diálogo é persistente e brilhante, mas o jogo de movimentos da câmara, o alternamento de planos, a mutação de lugares, o ritmo de imagens, são, no entanto, perfeitamente cinematográficos. Lembro-lhes, entre outros, a «Eva» (All about Eva), de Mackienvicz, o «Hamlet», de Laurence Olivier, e as «Noites Brancas», de Visconti.
Não só esses, mas muitos outros trouxeram dignidade ao sistema. Serão obras híbridas, plenas de cenas dialogadas, mas (aqui é que está a singularidade dessa dignificação) também o cinema está intimamente presente em tudo aquilo. Temos que confessar que isso tem a sua beleza, atingindo /página 4/ notável nível Intelectual, e que é, sem dúvida, boa arte, venha donde vier.
Vejamos. Esses filmes são realmente bons exactamente quando transcendem «o teatro em conserva». Os diálogos estão lá e, se são espirituosos ou emotivos, se têm elevação, eles correspondem à sua missão de servir o cinema. É claro que não falo nos filmes que são mau cinema e mau teatro. Mas, se analisarmos essas boas películas sonoras, veremos que elas não contêm os tais diálogos de teatro. Mesmo no caso, muito especial, de Shakespeare (e isso levantou escândalo) tiveram os maravilhosos diálogos de ser «aparados à tesoura». Se fizéssemos a experiência de levar, por exemplo, integralmente as falas da película «Eva» (que julgo poder apontar significativa do prestígio do género) para serem ditas num palco, como se fossem uma peça teatral, verificaríamos que se tornavam absolutamente deficientes. É que o cinema, mesmo nesses filmes, anda por tudo aquilo como um diabinho solto, olhando de frente, de lado, por detrás, focando de cima, saltando de rosto para rosto, perseguindo as personagens nas suas andanças, enquadrando sucessivamente as situações e narrando-as com o milagre criado do seu ritmo — o ritmo do cinema, que é onde está a genialidade peculiar da sua arte.
O facto do cinema ter passado a conter diálogos, mesmo quando belos diálogos, sóbrios, talentosos, não modificou a sua essência divergente da do teatro. Decerto ambos são espectáculo, ambos utilizam hoje a palavra dita, ambos se destinam a ser vistos por uma plateia. Mais, em ambos é primordial a encenação. Isso os Identifica? Não. Não é só nos diálogos, é exactamente no acto de encenar que eles se opõem.
É simplificar absurdamente o problema supor que a diferença fundamental entre as duas artes está apenas em ter, ou não, diálogos. O cinema não é apenas um hábil aglutinador de todas as outras artes, plásticas e ficcionistas. Ele tem profundas características peculiares, uma filosofia de arte própria. É claro que o cinema não está apenas no encanto das imagens, enquadramentos, ângulos, «travelings», etc. que, tendo beleza em si próprios, constituem antes a sua técnica, pois a sua estética está em servir-se oportunamente desses elementos como um meio alusivo, todo feito de subtileza e intenções. Com isso se atinge em cinema uma linguagem, um estilo, tão dúctil e subjectivo como o duma bela prosa ao serviço do romancista.
Em todos os tempos, desde Platão, se tem perguntado o que é Arte. Há quase 60 anos que se vem perguntando o que é cinema. Uma verdade me parece evidente, tão clara e elementar como as puras e excessivas verdades que celebrizaram Mr. de la Palisse: — as noções de estética são evolutivas, não saberemos dizer, em absoluto, o que é, ou não é, cinema. Mas nós, que o vimos nascer no nosso tempo e tornar-se grande, podemos garantir que é, quando feito com dignidade, uma arte magnífica e, mesmo quando sonoro e dialogado, não é teatro.
Roberto Nobre
Lembrando A Selva de Ferreira de Castro
(De A Selva)
(Em uso nas edições posteriores a 1955, data da Edição Comemorativa dos 25 anos do romance)
E devia-o, sobretudo, aos anónimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmãos, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extracção da borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência. Devia-lhes este livro, que constitui um pequeno capítulo da obra que há-de registar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos, em busca de pão e de justiça.
A luta de cearenses e maranhenses nas florestas da Amazónia é uma epopeia de que não ajuíza quem, no resto do Mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha -- da borracha que esses homens, humildemente heróicos, tiram à selva misteriosa e implacável.
FERREIRA DE CASTRO
A opinião de João Miguel Tavares, que subscrevo na íntegra
Livros, Bárbara e o pobre Eugénio
João Miguel Tavares jmtavares@dn.pt
Há coisas que irritam. Gente que fura as filas, que corta as unhas em público, que pára o carro no meio da estrada. Mas nada é tão irritante quanto Bárbara Guimarães a declamar Eugénio de Andrade na promoção do seu programa da SIC Notícias, Páginas Soltas. Aqueles 20 segundos de televisão são a maior piroseira cultural alguma vez vista em Portugal, pelo menos desde os tempos em que Manuel Alegre gravava discos de poesia com voz épica e cavernosa.E eu, que vejo a SIC Notícias por dever profissional todas as manhãs, estou constantemente a esbarrar naquele "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele", tantas vezes repetido que acabou por tomar conta da minha cabeça. Estou no duche e, de repente, "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele". Estou a comer os cereais e, à primeira mastigadela, "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele". Estou a mudar a fralda ao Tomás e, ao segundo dodot, "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele". É um vírus. É um vírus do pior que há.O meu problema não é só aquilo ser muito foleiro. É que a promoção a Páginas Soltas condensa tudo o que odeio no meio cultural português: a artificialidade impante, a relação reverencial com a arte, o livro como objecto sagrado. Bárbara Guimarães, com os lábios inchados de paixão, recita Eugénio de Andrade como se o "Livro" fosse a nova sarça ardente. O seu olhar nunca fixa a câmara - ou seja, nunca nos fixa a nós, pobres terrestres -, porque naquele momento ela está em transe, em plena epifania livresca, tomada pela inspiração do "Poeta". Aaargh!, preciso de uma água das pedras.Mas Bárbara, reparem bem, não se limita a declamar Eugénio de Andrade com ar afectado enquanto caminha por uma biblioteca a meia-luz. Isso seria coisa de amador. A certa altura, ela vira-se, encosta-se às prateleiras e roça levemente o corpo pelas estantes. É pena as badanas não saberem assobiar, porque aquela é uma manifestação única de erotismo literário: "Possuam-me, livros, possuam-me!" Tanta cultura. Tanta sensibilidade. Tanta devoção. Tanta falta de gosto.
Uma grande verdade a propósito da crítica e dos críticos em Portugal (diria também, a propósito de quase tudo...)
Carlos Leone, em entrevista ao DN (18 de Agosto)
sexta-feira, abril 21, 2006
REVISTA ATLÂNTIDA Vol. L 2005

REVISTA ATLÂNTIDA Vol. L 2005
SUMÁRIO
ESTUDOS E CRIAÇÃO ARTÍSTICA
11 Ilhas: Cidades, Arquitecturas, Patrimónios (colectânea de 12 textos sobre as ilhas: Açores / Madeira / Canárias – 1998-2004)José Manuel Fernandes
53 Modernidade chocante,sistemas neurasténicos e corpos aborrecidosVerónica Metello
65 A mediologia e a situação pósmoderna da músicaJorge Lima Barreto
69 Arte, sagrado e felicidade António Neves Leal
ESTUDOS E CRIAÇÃO LITERÁRIA
81 Pâle et blonde. Dort sous l’eau profonde.Uma
aproximação entre Maria Eduarda e Margarida Clark Dulmo
Liliana T. Dias Carvalho
91 O mundo infectado de alma. Uma leitura de “Hora Absurda”, de Fernando Pessoa
Alexandre Borges
103 Dueto a uma só voz (A Valesca de Assis, versão gaúcha de Zélia Gattai. Luiz António de Assis Brasil é o seu Jorge Amado)
Daniel de Sá
109 Gelo incandescente
Manuel Machado
113 Poesia
Pedro Mendes Alves
117 Poesia
Natércia Fraga
121 O Lisboês
Joaquim Evónio
125 A Emanuel Félixe a Manuel AntónioDias de Melo
133 Corsos de Memórias – o Corso que Vitorino Nemésio não fez(a António Machado Pires)
Lélia Pereira da Silva Nunes
CIÊNCIAS HUMANAS
139 Quatro povoadores açorianos. Muitas perguntas e poucas respostas
Segismundo PintoManuel Lamas de Mendonça
181 A fundação dos espaços conventuais na Ilha de São Miguel nos séculos XV a XVIII
Carla Cristina da Cruz Patrício
203 José de Sousa Nunes. O Homem, a Família e a Distribuição de Bens (1737-1795)
Lúcia de Lurdes Oliveira Tavares Santos
223 Subsídios para a História da Moeda Insulana e das crises monetárias nos Açores durante a segunda metade do século XIX
Paulo Silveira e Sousa
237 Notas sobre um contrato de empreitada no Topo há cem anos
José Mendonça Brasil e Ávila
245 Las fiestas y los bailes entre los mambises cubanos 1868-1898
Ismael Sarmiento Ramírez
259 Os portugueses no folclore goês
Teotónio R. de Souza
269Da condição actual do Ocidente a um primeiro diagnóstico
Miguel Soares de Albergaria
OUTROS SABERES
279 As áreas ambientais nos Açores: breve historial
Eduardo Carqueijeiro
281 Biodiversidade terrestre dos Açores
Paulo A. V. BorgesRegina CunhaRosalina GabrielAntónio Frias MartinsLuís SilvaVirgílio Vieira
291 Tempestades no Saara e poeiras no Atlântico
António Félix Flores Rodrigues
297 Espaço e Tempo: primórdios da relatividade de A. EinsteinRamiro Délio Borges de Menese
quinta-feira, abril 20, 2006
Fronteiras...


«Fronteira
De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente, doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.
O mesmo beijo aqui, o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcateia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.
Mas uma força que não tem razão,
Que nãao tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.»
Miguel Torga. Libertação (1944)
«Olhamos a face dos perecidos homens que nos deixaram o anseio de todas as viagens, nos territórios agora abandonados. Subimos aos cumes e contemplamos a terra, a superfície visível do sonho de todas as viagens nunca feitas. Quando nos começamos a libertar do medo e não tememos o abismo, a morte fica para trás, damos o passo em frente no vazio inaugural de um espaço/tempo diferente. A nossa alma derrama-se por todos os lugares e o nosso corpo já é só esquecimento. Sonhamos a possibilidade de não haver regresso. E não há regresso. Ao voltarmos todas as paisagens são diferentes. São os passos contínuos em redor do mundo, como que passos na cercania das próprias viagens.»
Duarte Belo. O Vento Sobre a Terra (apontamentos de viagens). Ed. Assírio e Alvim
La Cécité du Dessinateur - O Desenho entre a História da Arte e a Arte Digital
«O ter lugar das coisas não tem lugar no mundo.
A utopia é a própria topicidade das coisas.»
Giorgio Agamben
As novas práticas do desenho estão associadas também a novas percepções da realidade. As tecnologias necessitam de um corpo como interface para que haja interactividade entre o mundo real e o mundo fantasma. Não há simulacro sem haver a construção de um mundo, de um universo – o simulacro não pode existir apenas no mundo da representação. Por via da utilização das tecnologias, a relação processual do desenho sofre alterações. O computador, através de programas[1] onde se encontram réplicas de objectos do mundo real (lápis, borracha, tintas) permite que se crie uma interactividade entre o mundo real e o mundo fantasma – numa palavra, simula-se um real perceptivo, através do qual a imagem aparece ligada à criação artística. O conceito de autoria da obra de arte é aqui problemático, uma vez que o computador executa os comandos que o desenhador tipifica, mas estes comandos são decifrados pela máquina através de uma linguagem não perceptível ao homem – artificial. O homem enquanto ser digital[2] passa a interagir através dos meios multimédia, com imagens digitais, que representam um processo revolucionário de reprodução, manipulação e apuramento da imagem ou de elementos dessa imagem.
Coloca-se hoje a questão de como viver através dos interfaces numa realidade que, vivendo dos objectos, do design, se pode designar pela sua não-objectualidade, numa Era que já foi apelidada como sendo a do Design Total[3].
Para Arthur Danto[4] a arte Pop e, sobretudo Andy Warhol marcam o fim da arte — o fim de um tipo de arte que é compreendido pela história da arte, que agrupa estilos, relaciona movimentos, explica obras particulares e, sobretudo, parece mostrar uma linha quase contínua de evolução e progresso artístico. Já Yves Michaud, em L`Art à L`État Gazeux, afirma que não chegámos ao fim da arte: simplesmente equacionamos o final da idade “objectual” da arte. Deixou de haver a necessidade de objectos artísticos. As obras desapareceram pelo excesso da sua produção[5]. Torna-se curioso analisar esta afirmação à luz da prática do desenho, uma vez que a sua prática tem ocorrido quer na forma “analógica “, quer na forma digital, ou seja na sua forma material e imaterial.
Jonathan Crary, no seu livro Suspensions of Perception[6], procura explicar como é que a Modernidade Ocidental, desde o século XIX, fez com que os indivíduos se definissem em torno daquilo a que prestam atenção (pelos sentidos). Para Crary, o que se nota na sociedade ocidental do final do século XX é justamente uma “deficiência da atenção”, que talvez se explique pela ideia que o autor receber de Walter Benjamin – recebermos tudo em estado de distracção. O livro de Crary resulta então da tentativa de criar uma genealogia da atenção, que o autor baliza no século XIX, mais concretamente na segunda metade de Oitocentos (onde se define uma crise da percepção), e a partir dessa genealogia, determinar o seu papel na subjectividade contemporânea. Crary argumentará que a cultura do espectáculo não encontra o seu fundamento na necessidade de fazer um sujeito “ver”, mas cimenta-se em estratégias nas quais os indivíduos estão isolados, separados «and inhabit time as disenpowered.»[7]
A percepção torna-se, para a época contemporânea, um termo problemático: o século XIX quis restaurar a noção latina de “tornar cativo”, mesmo quando era evidente a impossibilidade de fixar e possuir determinado objecto. O que é importante para o poder institucional, desde os finais do século XIX, é assegurar que a função perceptiva garante um sujeito que é produtivo e capaz de socializar, integrando-se e adaptando-se a um grupo.
A atenção foi inevitavelmente o ingrediente de uma concepção subjectiva da visão, quer ao nível da produção, quer ao nível da recepção das obras de arte. Os escritos de Walter Benjamin sobre a perda da aura da obra de arte — a passagem do seu valor cultural tradicional (de culto) ao valor de exposição[8], permitem-nos identificar o triângulo existente desde sempre entre o artista, a obra e o público. Procurar o «efeito específico da arte»[9] é, desde a Poética de Aristóteles, perseguir o prazer que provém do terror e piedade, através da imitação verosímil das acções dos homens, e o que deriva da estrutura perfeita do mito como ser vivente[10], ou seja da história como um todo que se actualiza pelo efeito, catártico ou não, produzido, pela leitura, no leitor/espectador. Ao trazer Aristóteles à colação, verificamos que na era do digital, e nas novas formas de construção do desenho, não é possível falar em organons, porque não é, muitas vezes possível percepcionar os objectos como um todo, ou sequer como soma das partes. Também o carácter mimético da obra de arte é deslocado do seu “objecto” para os meios da sua produção – o lápis, a borracha, o pincel, as tintas, a caneta.
No desenho digital, podemos sobrepor todos os elementos lá colocados, a partir de movimentos quase instantâneos. Daí que a expressão de José Jimenez «tornámo-nos pobres»[11] ganhe aqui, aplicada a esta prática artística, um sentido muito particular. Como diz Jimenez, «tornámo-nos pobres porque na cultura contemporânea tudo se sobrepõe: linguagens, tempos, espaços. Na era das comunicações de massa a palavra (narrativa, poética, filosófica…) pode fazer-se valer tão-só nos interstícios do ruído, através da acumulação redundante e vazia, nos espaços confinados onde a situa a banalidade discursiva dominante, puramente serial, repetitiva. Que nivela e iguala qualquer tipo de expressão, independentemente dos seus sentidos e intencionalidade.»[12]
Para Yves Michaud, durante o século XX artístico, todo o movimento e toda a inovação que se presta à etiqueta de um –ismo chega ao nouveau-realisme e ao minimalismo dos anos 50 e 60 onde se desenvolve a arte da performance, a arte corporal, a arte da atitude, a arte conceptual, a arte da linguagem, a arte do objecto específico que não é nem pintura nem escultura dentro do minimalismo[13]. Tanto a Pop como o Minimalismo interrogam o problema da recepção do objecto artístico. O livro de Michaud explica-se através de um paradoxo: se a beleza e, concomitantemente o triunfo da estética se cultivam, se difundem, se consomem e se celebram num mundo que vive de obras de arte, como é que tudo se evapora e se torna “gasoso”?
Em «A Humanidade em Tempos Sombrios: Pensamento sobre Lessing», Hannah Arendt escreve: «Nada no nosso tempo é mais duvidoso, penso eu, do que a nossa atitude para com o mundo, nada menos garantido do que o acordo, que uma distinção nos impõe e que a sua existência afirma, com aquilo que se manifesta em público. No nosso século até mesmo o génio só se conseguiu desenvolver em conflito com o mundo e o domínio público, embora naturalmente encontre, como sempre fez, a sua forma própria de acordo com o seu público. Mas o mundo não é a mesma coisa que as pessoas que o habitam. O mundo está entre as pessoas, e este espaço-entre é hoje — muito mais do que os homens, ou mesmo o homem, ao contrário do que muitas vezes se pensa — o objecto de maiores preocupações e o domínio das convulsões mais evidentes em quase todos os países do globo. Mesmo onde o mundo ainda se encontra numa relativa ordem, o domínio público perdeu a capacidade de iluminação que originalmente fazia parte da sua natureza própria.»[14].
A citação é talvez demasiado longa, mas necessária para entender o que da estruturação do pensamento de Arendt podemos convocar para o nosso trabalho. Escrito em 1959 e publicado pela primeira vez em 1960, trazendo Lessing para a contemporaneidade, a questão que importa à autora é «a de saber até que ponto devemos agarrar-nos à realidade, mesmo num mundo tornado inumano, para que a humanidade não se reduza a uma palavra oca ou a um fantasma»[15]. Não nos iremos deter nas emigrações interiores de que fala Arendt: lendo o texto no contexto epocal, interessam-nos aqui expressões como «espaço-entre», «agarrar-nos à realidade» e «fantasma». A autora, a propósito de Lessing, fala acerca das tentativas de criação de mundos alheios à realidade como forma de escape à compreensão do mundo, sendo que, sempre que Arendt diz mundo, é legítimo substituir esta palavra por sociedade. Justificando a posição de Lessing como contrária a esta atitude (a de alheamento do mundo exterior), a autora afirma que o filósofo, tendo embora sido um incompreendido no seu tempo, não se evadiu, dado que acreditava na sustentação do pensamento em diálogo com o mundo: não eram as coisas em si que interessavam a Lessing, mas sim a relação que os conceitos/objectos estabeleciam com o público, dialogando com ele — e é nesta atenção à recepção das coisas pelo público que Lessing pode ser trazido para o nosso tempo.
De que modo é que podemos convocar o pensamento de Arendt para um trabalho que pretende reflectir as relações entre o desenho “analógico” e o desenho digital? Antes de mais o desenho é uma imagem. O digital remete-nos de imediato para uma linguagem codificada, o que suspende o imperativo da matéria, ou da materialização. A partir do digital, o desenho ganha uma nova fisicalidade – o monitor do computador é o espaço visual do ambiente de trabalho, mas também funciona como o suporte do desenho. Por isso, é o outro olho do desenhador, aquele onde talvez se descobrirá um palimpsesto virtual que devolva aos desenhos digitais a memória que hoje não têm, por não ser possível, quando se termina o desenho, identificar onde residem as alterações que o desenhador foi indicando.
O desenho tradicional só existe enquanto matéria – os enganos e alterações que possamos verificar têm a mesma durabilidade do suporte que sustenta o desenho – normalmente, o papel.
Talvez seja possível estabelecer ligações entre a topicidade do desenho tradicional e a u-topia do desenho digital. Se a utopia se caracteriza por ser um anti-espaço, por recusar o lugar em proveito do protótipo, a identidade do desenho que aparece nas artes digitais, reflecte as interrogações que, na cultura contemporânea se colocam em torno da percepção do espaço. Se o desenho digital não se tipifica, a priori, por uma limitação espacial que no tradicional se encontra, simplesmente, pelo tamanho de uma folha, podemos enquadrar o digital numa estética da desaparição, do desvanecimento, uma vez que as imagens se caracterizam pela sua fugacidade, pela memória da máquina da visão, ou melhor, da persistência de uma imagem na retina[16].
[1] Nomeadamente o Paint e o Corel Draw.
[2] Cf. Nicholas NEGROPONTE. Being Digital, Alfred A. Knopf, New York, 1992.
[3] Expressão utilizada por Maria Teresa Cruz, no seu texto, «O Artificial ou A cultura do design total», em www.interact.com.pt
[4] Cf. Arthur C. DANTO. After The End of Art, Contemporary Art and The Pale of History. Princeton, Princeton University Press, 1997
[5] Cf. Yves MICHAUD. L`Art à L` État Gazeux, Essai sur le triomphe de l`esthétique. Paris, Ed. Stock, 2003
[6] Cf. Jonathan CRARY. Suspensions of Perception – Attention, Spectacle and Modern Culture. Cambridge, Massachusetts: M.I.T. Press, 2ª Ed., 2000
[7] Idem, P. 3
[8] Cf. Walter BENJAMIN, «A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica» In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Ed. Relógio d` Água, s. Ed., 1992
[9] Cf. Aristóteles. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Lisboa: IN-CM, 4ª ed., 1994, p. 148. As referências a esta obra terão como base esta edição
[10] «Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um organismo vivente pequeníssimo não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria belo, grandíssimo (porque faltaria a visão do conjunto, escapando à vista dos espectadores a unidade e a totalidade; [...] Tal como os corpos e organismos viventes devem possuir uma grandeza, e esta bem perceptível como um todo, assim também os mitos devem ter uma extensão bem apreensível pela memória.» In Op. Cit., pp. 113-114
[11] JIMÉNEZ, José. A Vida Como Acaso. Complexidade do Moderno,. Lisboa : Ed. Vega, 1ª Ed., 1997, p. 9
[12] Idem, p. 12 (O sublinhado é nosso)
[13] Cf. Yves MICHAUD. L`Art à L` État Gazeux, Essai sur le triomphe de l`esthétique. Paris, Ed. Stock, 2003
[14] Cf. Hannah ARENDT. «A Humanidade em Tempos Sombrios: Pensamentos sobre Lessing» in Homens em Tempos Sombrios. Lisboa: Ed. Relógio d`Água, 1991, pp. 12-13 (Os sublinhados são nossos)
[15] In A. Arendt, Op. Cit., p. 33
[16]