sábado, agosto 19, 2006

A opinião de João Miguel Tavares, que subscrevo na íntegra

DN, 19 de Agosto

Livros, Bárbara e o pobre Eugénio

João Miguel Tavares jmtavares@dn.pt

Há coisas que irritam. Gente que fura as filas, que corta as unhas em público, que pára o carro no meio da estrada. Mas nada é tão irritante quanto Bárbara Guimarães a declamar Eugénio de Andrade na promoção do seu programa da SIC Notícias, Páginas Soltas. Aqueles 20 segundos de televisão são a maior piroseira cultural alguma vez vista em Portugal, pelo menos desde os tempos em que Manuel Alegre gravava discos de poesia com voz épica e cavernosa.E eu, que vejo a SIC Notícias por dever profissional todas as manhãs, estou constantemente a esbarrar naquele "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele", tantas vezes repetido que acabou por tomar conta da minha cabeça. Estou no duche e, de repente, "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele". Estou a comer os cereais e, à primeira mastigadela, "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele". Estou a mudar a fralda ao Tomás e, ao segundo dodot, "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele". É um vírus. É um vírus do pior que há.O meu problema não é só aquilo ser muito foleiro. É que a promoção a Páginas Soltas condensa tudo o que odeio no meio cultural português: a artificialidade impante, a relação reverencial com a arte, o livro como objecto sagrado. Bárbara Guimarães, com os lábios inchados de paixão, recita Eugénio de Andrade como se o "Livro" fosse a nova sarça ardente. O seu olhar nunca fixa a câmara - ou seja, nunca nos fixa a nós, pobres terrestres -, porque naquele momento ela está em transe, em plena epifania livresca, tomada pela inspiração do "Poeta". Aaargh!, preciso de uma água das pedras.Mas Bárbara, reparem bem, não se limita a declamar Eugénio de Andrade com ar afectado enquanto caminha por uma biblioteca a meia-luz. Isso seria coisa de amador. A certa altura, ela vira-se, encosta-se às prateleiras e roça levemente o corpo pelas estantes. É pena as badanas não saberem assobiar, porque aquela é uma manifestação única de erotismo literário: "Possuam-me, livros, possuam-me!" Tanta cultura. Tanta sensibilidade. Tanta devoção. Tanta falta de gosto.

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