quinta-feira, abril 20, 2006

A propósito de Cinq Propositions Pour une Théorie du Paysage, de Augustin Berque

«Nem a cultura nem a sua destruição são eróticas; a fenda entre ambas é que se torna erótica. (...)
Talvez venha daí um meio de avaliar as obras da modernidade: o seu valor proviria da sua duplicidade. É necessário entender por isto que elas têm duas margens. A margem subversiva pode parecer privilegiada porque é a da violência; mas não é a violência que impressiona o prazer; a destruição não lhe interessa; o que ele quer é o lugar de uma perda, é a fenda, o corte a deflação, o fading que se apodera do sujeito no auge da fruição. A cultura reaparece como margem: sob qualquer forma.»
Roland Barthes.
[1]

A citação é longa mas necessária para compreender a ideia do autor e a forma como ela se pode integrar nesta reflexão. Para analisar Cinq Propositions Pour une Théorie du Paysage
[2], é necessário ter em consideração a ideia de duplicidade — a reflexão sobre o objecto artístico só é inteira quando analisada pelas duas margens de que fala Roland Barthes. E ainda que este autor aplique esta ideia a uma teoria do texto, e se insira numa corrente de análise estruturalista, é possível convocar a noção de «fading» para a análise dos cinco textos que compõem Cinq Propositions...
Apresentando uma visão fenomenológica de várias teorias paisagistas, Cinq Propositions Pour Une Théorie du Paysage remete-nos para cinco interpretações, de cinco autores com formações científicas distintas: da geografia à sociologia, da arquitectura paisagista à agronomia, passando pela filosofia, os ensaios que formam este livro estruturam-se em torno do conceito de movência. A paisagem é encarada como ser mutante: regendo-se por leis de entropia, está em permanente (re)invenção pela sociedade.
Como Augustin Berque afirma na introdução ao volume que dirige, paisagem e cultura do lugar são conceitos que, no século XX, se contaminaram, sendo hoje difícil destrinçar os limites inerentes a cada um, porque «le paysage ne réside seulement dans l`objet, ni seulement dans le sujet, mais dans l`interaction complexe de ces deux termes.» (Berque, 1994, p. 5). Consequência da evolução histórica do local, resultante da intervenção humana multissecular (contínua ou desfasada no tempo, incidindo num período histórico específico ou não), as teorias da paisagem reflectem necessariamente o clima, o solo, a morfologia urbana, o regime dos ventos, a vegetação, o trabalho do homem, as relações económicas e sociais, o valor histórico, artístico e cultural do local, os juízos sobre o belo e o feio, o sublime e o grotesco. A análise da escrita do lugar (topografia) — e sendo o objectivo do livro agir socialmente sobre a paisagem (Berque, 1994, p. 7), binoculando-a —, terá de reflectir todos estes elementos.
O artigo de Augustin Berque, geógrafo orientalista, desenvolver-se-á em torno do conceito de civilizações paisagistas e não paisagistas, o de Michel Conan, sociólogo, estrutura-se em torno da questão da articulação entre a identidade social e a paisagem enquanto que Pierre Donadieu, agrónomo, propõe uma linha de interpretação e acção para preservar as paisagens rurais e os paysans e Bernard Lassus, arquitecto paisagista, coloca dúvidas concretas sobre as interrogações de um arquitecto quando intervém num arranjo da paisagem. Já Alain Roger, filósofo e escritor, desenvolve o seu artigo em torno de um conceito criado a partir de um neologismo: a double artialisation (sendo a partir deste conceito que o autor reflecte sobre a existência da(s) paisagem(ns) e da sua história no Ocidente. Temos assim dois artigos com propostas concretas de intervenção na paisagem e três artigos de teor mais reflexivo. Comecemos então a sua análise...

O artigo de Augustin Berque, «Paysage, Milieu, Histoire», desenvolve-se a partir da relação entre o conceito de história e o conceito de meio-ambiente. O autor indica que existem civilizações paisagistas e não paisagistas
[3] e indica quatro itens para identificar as diferentes civilizações: uso de um ou mais vocábulos para dizer “paisagem”[4], uma literatura (de tradição oral ou escrita) que descreva as paisagens e cante as suas belezas, as representações picturais da paisagem e a existência ou não de jardins de recreio (Berque, 1994, p. 16). O primeiro destes critérios é o mais discriminativo e, segundo Berque, a história demonstra que ele implica todos os outros. Só a China, a partir do século IV, conseguiu conjugar os quatro critérios e depois a Europa, a partir do século XVI. A criação de uma proto-paisagem deve começar, no entender do autor, pela reflexão sobre estes quatro critérios e o seu uso na sociedade que se pretende estudar. A partir desta boa definição poderemos entender as causas que levaram os europeus a interessarem-se pela paisagem a partir do século XVI (que pela paisagem do país, do estrangeiro e também pela criação de paisagens imaginadas — lembremos que a Utopia de Thomas More é publicada em Basileia em 1516 e A Cidade do Sol, de Tomás Campanella, é sua contemporânea).
Se a paisagem à europeia (Berque, 1994, p. 22) é indissociável da modernidade é também a imagem da consciência de uma perda. A reflexão artística sobre a paisagem europeia comporta no seu cerne uma incompatibilidade fatal com a modernidade, o que, no século XX, terá como consequência o desaparecimento da paisagem na pintura das vanguardas a ponto de se reflectir sobre a morte da paisagem. A razão desta contradição interna deriva de, no entender autor, de a nossa civilização ser ao mesmo tempo paisagista e física — o interesse e a noção de paisagem e a revolução copérnica são contemporâneos, ou seja, a consciência da finitude da Terra e o interesse pela natureza descobrem-se ao mesmo tempo e «le monde de la physique, en tant qu`il este centré sur l`objet, n`a en principe aucun raport avec le point de vue du sujet. En cela, il est foncièrement étranger au paysage» (Berque, 1994, p. 23). A paisagem e o sentimento da natureza, desde os primeiros românticos à Land-Art contemporânea vão, de quando em quando, colocar-se em antítese a este profundo movimento da modernidade. A paisagem é tragectiva e não é, para Berque, nem um dado objectivo nem uma ilusão subjectiva. A Écoumène, conceito desenvolvido pelo autor (Berque, 1994, p. 25), consiste na relação da humanidade com o seu entendimento da terra. Se seguirmos o conceito de proto-paisagem que o autor propõe, constatamos que a época contemporânea é a mais rica no uso do vocábulo paisagem: vivemos em paisagens no nosso quotidiano, desde as paisagens urbanas, sonoras, políticas, de guerra (as imagens do 11 de Setembro fazem hoje parte do nosso inventário de paisagem, entendida no seu sentido mais literal: porção de território que se abrange num lance de olhos)... Cabe às utopias modernas dar à paisagem um sentido que nos motive e integre no mundo físico, tornando-o fenomenológico, (porque o indivíduo esta triplamente desintegrado: do seu ambiente físico, da sua relação com a comunidade matriz e mesmo do seu próprio corpo, pelo discurso da ciência e pelos objectos que o rodeiam) construindo um topos que una uma paisagem desirmanada com a nossa condição humana. Mas esta utopia não será incompatível com o projecto da modernidade? È que a clivagem aberta pela época moderna continua a dar sinais de ser, violentamente, cada vez maior...

O artigo de Michel Conan, «L`Invention des Identités Perdues» (Berque, 1994, p. 33), estrutura-se em torno da tentativa de criar uma nova reflexão sobre a paisagem e sobre o pensamento do paisagista. A ideia da paisagem como bem público, remetendo para um património fundador da existência de uma sociedade, é recente. Os grupos sociais que se exprimem a propósito da paisagem são bastante diversos mas, de um modo geral, juntam-se para defender um território de uma transformação (Berque, 1994, p. 35). O autor questiona a noção de assinatura da paisagem e a forma como se manifesta a simbólica colectiva da paisagem. Se a paisagem é um símbolo do grupo social reunido na sua apropriação pelas formas de experiência ritualizadas de um lugar, que tem a assinatura de uma identidade, o valor que lhe é atribuído é um símbolo dos ideais colectivos do grupo. Historicamente prova-se que as invenções de novas paisagens são fruto de uma rotura de um grupo social com um poder instituído. Os pintores da “escola” de Barbizon são um bom exemplo dessa rotura e dos caminhos que se abrem a partir dela: são eles que criam uma nova paisagem, justamente pela consciência que têm da sua perda. Quando olhamos para as suas pinturas invade-nos um sentimento de spleen: a euforia que o pintor nos transmite nas suas pinceladas é fruto de um olhar último (que se fixa na pintura) para o que irá, fatalmente, desaparecer. A época contemporânea é rica nas figuras do fim e a natureza, desde a Revolução Industrial, é uma dessas figuras. Nas palavras de Michel Conan, «Historiquement, de Théocrite à L`École de Barbizon, l`invention d`un nouveau paysage semble portée par un groupe social qui, bien que privilégié, est aussi soumis à des contraintes sociales nouvelles auxquelles il ne peut se soustraire. Ce furent dans le passé lointant des hommes de cour, puis au XVIIIe siècle des citadins ou des noubles en lutte contre le pouvoir royal, et au XIXe siècle des bourgeoisies urbaines en conflit avec des aristocraties foncières ou des proletáriats »(Berque, 1994, p. 40). Cada um destes grupos estava à procura de um país e de uma paisagem (que queriam ou não que fosse dominada pelo homem). A sociedade ocidental pensa na paisagem como metáfora (e precisa desesperadamente desta figura). Sendo uma invenção urbana (?), a paisagem actua como transporte para um outro mundo no qual existe ainda uma autenticidade que na cidade se perdeu: ir para o campo, encontrar paysans, é voltar a uma memória arquétipa que se está a perder (o um querer olhar ainda para a aura das paisagens). Walter Benjamin reflectia já em 1936 sobre a nossa pobreza cada vez maior em contar histórias maravilhosas ao mesmo tempo que somos todos os dias informados sobre o que acontece no mundo inteiro (Benjamin, 1992, p. 34), como se tivéssemos substituído a informação pela paisagem, por sabermos, pela informação, que ela existe
[5]... e, simultaneamente, temos uma necessidade diária de construir novas paisagens..
Michel Conan defende que para uma boa intervenção no território, o arquitecto paisagista (e, no entender do autor, deve ser um paisagista a intervir) deve conhecer profundamente não só o terreno como os grupos sociais que lá residem, de modo a que o arranjo, a invenção da paisagem seja coerente com o espírito do lugar bem como com a memória dos grupos.

Já Pierre Donadieu, em «Pour une Conservation Inventive des Paysages» (Berque, 1994, p. 53), artigo onde avança várias propostas técnica de organização do território, indica que a ideia de ruralidade encontra-se hoje no cruzamento de todos os caminhos de reflexão sobre a paisagem. As práticas de arranjo das paisagens rurais hesitam sempre entre as ideias de conservação e de desenvolvimento (como se fossem antónimos), oscilando entre um querer manter a memória da região e, em simultâneo, olhar para o futuro da região, criando estruturas económicas e sociais que impeçam a sua desertificação (e deixe de ser um lugar...). Donadieu interroga-se sobre se é proveitoso olhar para o planeamento do território rural e urbano da mesma forma (Berque, 1994, p. 53) se os espaços e as suas necessidades são diferentes. No entender do autor, o fim dos camponeses gerou o apocalipse das paisagens rurais caracteristicamente francesas. Para o agrónomo, uma paisagem é a consequência visível de um projecto ecológico, económico e técnico — não tem a sua raiz numa visão do mundo ou numa ficção (mas o olhar do agrónomo não é já um olhar particularizado, apesar do domínio da técnica?). Na ausência de utopias ou de mitos sobre a paisagem, na presença de um volte-face sistemático pelo poder e pela ciência (e pelo poder da ciência), a questão que urge colocar depreende-se com saber como é que a sociedade gere duas ordens antagónicas: a ordem social e económica e a ideia desejável que se faz (através dos discursos oficiais) da paisagem. A ausência de utopias modernas é a causa ou a consequência da dificuldade que hoje existe em reparar os projectos sociais integrados na paisagem? (Berque, 1994, p. 69) De onde vem então a ideia de paisagens ecológicas, de casas ecológicas?...

Bernard Lassus estrutura o seu artigo, «L`obligation de l`invention du paysage aux ambiances successives» (Berque, 1994, p. 83) em torno de vários projectos realizados pela sua equipa, colocando dúvidas concretas sobre o papel do arquitecto na construção da paisagem. Criar paisagens diferentes em diferentes ambientes é o maior projecto, e também o maior receio do arquitecto: como criar harmoniosamente uma paisagem inexistente ou como requalificar uma zona urbana ou marítima (como o porto de Estocolmo) que necessita de intervenção? O autor propõe uma intervenção na paisagem que conjugue elementos do passado integrados na intervenção do arquitecto, o que permite uma visão em continuum. A essência paisagista e, acrescentamos, a arte da paisagem, gere-se entre este entendimento (inteiro) da paisagem (Berque, 1994, p. 90), porque «le concept d`entité paysagére, ici en tant que nature, ne peut donc être abordé comme un problème seulement visuel. Il est de l`orde du symbole. Cela explique d`ailleurs l`importance que jouent les cartes dans les débats actuels sur les paysages. La carte représente en effet, par ses taches d`une certaine couleur, les surfaces et les formes de l`entité de nature associée à cette couleur.» (Berque, 1994, p. 95). Se a nossa representação do tempo evolui, também evoluem as formas de olhar e de ver. É difícil ao homem contemporâneo unificar discursos; fragmentada a sua visão, é também fragmentado o seu olhar e é por isso necessário entender que a literariedade da paisagem é concreta, mas também mítica. A primeira consiste em conservar a natureza nos seus processos biológicos; a segunda, na protecção das intervenções anteriores, de modo a que não se destrua tudo em nome do novo.

No artigo de Alain Roger, «Histoire d`une passion théorique ou Comment on devient un Raboliot du Paysage» (Berque, 1994, p. 109), é defendida uma noção que permite ligar os cinco artigos em torno de uma perspectiva : a double artialisation (Berque, 1994, p. 115). Para o autor, o país é o grau zero da paisagem, aquele que precede a artialização directa (in situ) e/ou indirecta (in visu). Um país não é, na sua essência, uma paisagem. Encontramos as paisagens do país através de uma mediação da arte (sendo através desta mediação que elas se tornam familiares ou naturais). Na esteira de Proust, Alain Roger defende que para um entendimento da paisagem é necessário que primeiro se proceda à sua leitura (à sua interpretação). Para Proust, o que torna A Primavera de Millet ou os quadros de Claude Monet é o que os quadros trazem consigo, «qual reflexo inatingível, a impressão que deram ao génio, e que nós veríamos errar tão singular e despótico sobre a face indiferente e submissa de todas as terras que tivesse pintado. Esta aparência com a qual eles nos cativam e nos decepcionam e para além da qual quereríamos ir, é a própria essência desse algo de certo modo sem espessura, — miragem parada numa tela, — que é uma visão.» (Proust, 1998, pp. 47-48). O dualismo país-paisagem (e Roger encara o corpo como a síntese desse dualismo) tem de ser encarado à luz da mediação artística no local (in situ) e no olhar reflexivo para as paisagens (in visu). Para o autor, a modernidade criou a paisagem por conseguir nesta época desenhar vários países. Sendo essencialmente uma invenção pictural, o seu entendimento alastrou-se para outros domínios (como o da literatura). O aparecimento da janela no quadro (e também na poesia) é a síntese da reflexão interior/ exterior.

O conceito de double artialisation defendido neste artigo por Roger é fulcral para compreender os restantes quatro artigos. Todos eles reflectem a tensão, mediada pela produção artística, entre o local e o nosso olhar (entre o in situ e o in visu). Resta aqui saber se a paisagem existe per si ou é uma construção mental do homem: numa época em que a morte é um tema que levanta uma reflexão cada vez maior (morte do autor, do romance, da arte, da paisagem...), a criação de uma teoria sobre a paisagem que conjugue a arte e a técnica, onde é possível olhar para a fenda deixada pelas duas margens de análise de que fala Barthes, «nostalgie d`un Eden perdu et volunté de travailler en vue d`un monde meilleur » (Thibergien, 2001, p. 18) é talvez uma tentativa de olhar para a fenda deixada aberta pelos projectos da modernidade e analisá-la não pelo sentiment de la nature tão caro ao espírito romântico, mas pela estetização de um olhar sobre um lugar de uma perda.
[1] Roland BARTHES. O Prazer do Texto. Tradução Portuguesa de Maria Margarida Barahona, Lisboa: Ed. 70, 1997, pp. 40-41
[2] Augustin BERQUE (dir.). Cinq Propositions pour une Théorie du Paysage. Seyssel, Champ Vallon, 1994
[3] Ideia que A. Berque retoma noutros livros, nomeadamente em Les Raisons du Paysage. Editions Hazan, 1995
[4] Nas línguas latinas, o termo aparece no século XVI em Francês. País e Paisagem derivam (por empréstimo) de Pays e Paysage. Cf. José Pedro MACHADO. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa,: Livros Horizonte, 3ª ed. 1977, Vol. IV, p. 281
[5] Seria interessante reflectir sobre o fascínio contemporâneo pelo deserto (durante muito tempo olhado como um não-lugar), mas não cabe aqui discorrer sobre esse assunto.


Liliana Dias Carvalho

1 comentário:

Fil Serra disse...

Obrigado pelo seu texto sobre Augustin Berque, Cinq Propositions (...). Foi um autor que eu descobri e de quem gosto muito. E o seu texto foi muito esclarecedor.