quinta-feira, abril 20, 2006

O Utópico Convívio entre a Câmara e a Pena - A Selva entre Ferreira de Castro e Leonel Vieira




«Le paysage ne réside seulement dans l`objet, ni seulement dans le sujet, mais dans l`interaction complexe de ces deux termes.»

Augustin Berque

Em dois dos livros de Roberto Nobre sobre cinema – Horizontes de Cinema[1] e Singularidades do Cinema Português[2] -, são várias as referências que defendem o potencial cinematográfico da obra de Ferreira de Castro. O próprio romancista, indica-nos Nobre, dirigiu, na altura em que era jornalista em O Século, «em estilo vanguardista, as filmagens de um curto documentário, realizado para lançamento de um concurso daquele diário, chamado Estátuas de Portugal, película que se perdeu»[3]. Nobre indica ter visto a exibição desta película no cinema Condes.

Para além desta experiência cinematográfica, diz-nos também o autor de Singularidades que Castro, «nos seus tempos de jornalista militante, foi dos que, inicialmente, inicialmente em Portugal escreveram sobre cinema nos seus significados social e de obra de arte»[4] no tempo dos cine-romans, época áurea do folhetim cinematográfico. O plot do filme ia sendo contado à medida em que saiam os jornais e magazines.

O escritor de A Selva fez parte destes screen-writers dos anos 20 portugueses e estamos em crer que este registo terá em parte influenciado o seu percurso enquanto escritor, nomeadamente de Emigrantes e A Selva.

Falar das relações do cinema com a literatura não será exactamente o mesmo que falar das relações da literatura com o cinema, mas ambas existem. O que arrisco aqui dizer em relação a A Selva de Ferreira de Castro é que é possível encontrar, a par de uma estrutura diegética perfeitamente montada pelo autor, também uma estrutura imagética – onde podemos encontrar um olhar cinematográfico do romancista.

Creio que esta afirmação ganha algum relevo se pensarmos que na altura em que Castro escrevia o romance que aqui nos ocupa – A Selva -, tinha também a seu cargo a escrita dos cine-romans e era, com Roberto Nobre, um espectador acérrimo de cinema.

Talvez possa estar aqui um dos muitos motivos para a forte apetência que muitos realizadores de cinema sentiram para adaptar A Selva à linguagem da tela branca, logo nos anos 30.

Roberto Nobre desvenda-nos algumas histórias dos projectos não realizados de adaptação do romance e de um que terá sido realizado, segundo Nobre, à revelia do romancista, tendo até a particularidade de utilizar o Ribatejo e a serra de Sintra como cenários da Amazónia e os campinos ribatejanos como seringueiros. Terá sido realizado como película represália, uma vez que o realizador Max Nosseck (1902-1972)[5] pretendeu ter, a troco do pagamento de 20% dos direitos da obra a Ferreira de Castro, total liberdade para adaptar A Selva, cedência que Ferreira de Castro não fez: «Max Nossek (então aureolado com o êxito americano do seu filme Dilinger), que se deslocou a Portugal com a sua esposa, a escritora especializada como argumentista de filmes para Hollywood, de nome Geneviève Haugen. Vieram estudar a adaptação com o próprio autor, pois aí estava a dificuldade.

(...) A empresa norte americana representada por Nossek exigia afinal liberdade absoluta de adaptação, com o que Ferreira de Castro não concordou. Pretendiam transformar o romance em filme de aventuras na selva (...).

Nossek, desesperado, mandou a H. Da Costa um ultimato para que ameaçasse o autor de que, se não transigisse, iam fazer uma outra película sobre aquela mesma selva, sem ser com o argumento extraído da obra. Ferreira de Castro não transigiu e respondeu, sorrindo a H. da Costa que nunca tinha movido em sua vida qualquer processo a alguém, mas que, naquele caso, se tal filme futuro contivesse qualquer passagem do seu livro, então seria a primeira vez.

Consequência pitoresca: Nossek, afinal, sempre veio a fazer a tal película represália, com aventuras na “selva amazónica”, mas os exteriores foram filmados... em Portugal, ali na Borda d`Água do Ribatejo, com o nosso ameno rio mascarado de imponente Amazonas em em que os nossos campinos foram utilizados como... seringueiros. Nossek, que nunca vira uma floresta virgem, foi filmá-la na mata nacional de Sintra, que é, de facto, uma bela floresta, mas nada tem de virgem. Confesso um fundo desgosto de não ter visto exibidos cá tais prodígios. Assim não sei se meteu os saloios dos morangos a fazer de índios paratintins...»[6].

Acompanhamos Nobre nestas ironias do desgosto cinéfilo. Para além deste caso verdadeiramente exemplar, que nos aguçou uma curiosidade detectivesca – tentar saber onde parava esse filme dos anos 40. Encontrámos Kill or Be Killed (1950), cujo argumento nada tem a ver com o romance de Castro, mas que conta com actores portugueses (João Amaro, Lopes da Silva, Mira Lobo, Leonor Maia e Licínio Sena) – é o tal filme de aventuras na selva que Nosseck pretendia realizar.

Dos projectos de adaptação cinematográfica de A Selva, podemos hoje ver duas realizações: a primeira de 1971, por Márcio de Souza, ainda em vida de Ferreira de Castro; a segunda, de 2002, numa co-produção entre Portugal, Brasil e Espanha. Esta segunda adaptação tem já lugar na história do cinema português pois foi, até à data, a maior produção cinematográfica realizada e a que mais espectadores levou às salas portuguesas de cinema. Foi talvez uma das poucas vezes em que um filme português não passou à margem do público. Gostando ou não do filme, julgo ter sido saudável a discussão levantada por um filme que foi visto.

Leonel Vieira (1969) é oriundo de uma zona geográfica onde ainda são bem visíveis os efeitos da emigração para o Brasil. No norte de Portugal, a maioria das localidades tem na sua história social, cultural e urbana, um caso de “brasileiro torna-viagem”. Seja através de trechos literários, encomendas escultóricas, histórias de emigrantes que regressam e encomendam os seus “palecetes de azulejo com mirantes”, a figura do “brasileiro” faz parte da memória local.

O realizador português demonstra um conhecimento empírico das razões pelas quais Portugal e o Brasil estão profundamente ligados. Talvez por isso tenha existido o magnetismo pelo universo castriano. Hoje, o Portugal emigrante volta a aparecer como um dos mais próximos da nossa verdade. Talvez sem essa intenção, o filme de Leonel Vieira contribuiu para o tema da emigração no cinema português.

Se na primeira adaptação de A Selva (1971), é preponderante um olhar etnográfico do realizador, na segunda o olhar do realizador português procura dar-nos a ver toda a memória de uma paisagem afectiva que soube interpretar do universo de Castro. Uma outra memória, a da experiência estética vivida pelo realizador aquando das suas deslocações à Amazónia para desenhar o filme, procurando fragmentos que transmitissem uma imagem de permanência entre o tempo e a paisagem descritos no romance.

Tanto no filme como no livro, a paisagem é personagem, tempo e espaço numa só entidade – a da selva. As personagens, até pelo vestuário, estão camufladas na floresta.

Ferreira de Castro poderia não ter concordado com esta adaptação de A Selva, por todos os motivos que aparecem como crítica ao filme: alguma cedência à indústria do cinema ou argumento pouco desenvolvido para melhor exploração do carácter dos personagens. Leonel Vieira talvez lhe respondesse, como lemos numa sua entrevista ao jornal Público, que «o cinema são imagens» e a sua intenção não era fazer um documentário do livro[7].

Se não existir outro qualquer lugar de diálogo entre o livro e o filme, certamente ele existirá no agora criado Museu do Seringueiro, no local onde se construíram espaços cenográficos efémeros para fazer a rodagem do filme. Permaneceu montado o espaço que hoje acolhe a memória dos “brabos”, a quem Ferreira de Castro deve A Selva.



[1] 1ª ed., Guimarães, de 1939

[2] 1ª Ed., Portugália, 1964

[3] In Singularidades, p. 231

[4] Idem, p. 231

[5] Realizador polaco residente nos Estados Unidos da América, com a particularidade de ter trabalhado em Portugal nos anos 30 com Arthur Duarte e António Lopes Ribeiro, tendo realizado com este último a película Gado Bravo (1933). Representante do género film-noir, pelo seu Dillinger (1945). Realizou também Le Roi dês Champs-Élises (1937), com Buster Keaton como actor.

[6] Ibidem, pp 234-236

[7] Cf entrevista ao Jornal Público, de 12 de Julho de 2001

Liliana Dias Carvalho

2 comentários:

Liliana Dias Carvalho disse...

Conferência realizada por mim, Liliana Dias Carvalho, no Congresso Internacional dos 75 Anos de A Selva de Ferreira de Castro

Anónimo disse...

Aprendi muito