quinta-feira, abril 20, 2006

O Naturalismo em Portugal

Depois da reflexão seiscentista de Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda (pelo afastamento da corte urbana e posterior refúgio no campo, onde re-escreveu, em contacto com a natureza, os seus poemas) e Rodrigues Lobo, que fizeram, já no século XVI, a apologia do retorno ao campo e ao culto dos seus valores, o olhar sobre a paisagem foi sendo arredado da produção artística nacional. É já no século XIX, em pleno Romantismo, que a tradução do interesse sobre a paisagem, nascido da síntese entre o olhar científico e a percepção sensível do mundo natural, se traduz numa leve revolta antiacadémica de Tomás Anunciação (1818-1879), em 1844, contra a inexistência de uma cadeira de Paisagem, com pintura en plein air, numa anacrónica Academia de Belas-Artes de Lisboa.
Das várias propostas picturais que podemos enunciar como pinturas do Romantismo português, destacamos Cinco Artistas em Sintra (1855), de João Cristino da Silva (1829-1877) por nesta tela encontrarmos as possibilidades, a história e os limites da pintura do romantismo português. Julgamos sensato aplicar ao Romantismo na pintura em Portugal, a mesma máxima com que Garrett se definiu como autor no poema Camões (publicado em Paris em 1825, na época em que Garrett se encontrava exilado), que consagra este movimento literário português desde logo, como paradoxal: Se quando falamos de romantismo(s) temos presente a ideia dinâmica de transformação de documentos históricos em monumentos artísticos, urge questionar o porquê de o nosso romantismo não se iniciar, em primeiro lugar com o género primordial da época — o Romance —, em segundo, porque é que Almeida Garrett e Alexandre Herculano recusam a responsabilidade de se afirmarem como românticos e, em terceiro, a razão pela qual o carácter do trágico (em literatura e nos outros domínios artísticos) não tem expressão no nosso Romantismo. Neste seguimento, a pintura do Romantismo português não é (enquanto totalidade) nem clássica, nem romântica... É, sobretudo, cenário. Podemos entender a tela de Cristino como uma alegoria à necessidade de olhar e pintar a paisagem sur le motif. O quadro tinha como destino a participação na Exposição Universal de Paris (que aconteceu em 1855), podendo ser encarado como um manifesto: juntar cinco artistas em torno de um ideal de pintura é indicar um caminho a seguir. Todo o quadro se estrutura em torno de uma figura central — Anunciação —, pintada no acto de pintar. O local é geograficamente e pitorescamente reconhecido — Sintra —, vendo-se ao longe o Palácio da Pena, obra contemporânea dos artistas que se retratam no quadro: Por detrás de Anunciação está Metrass e, mais longe, à direita, Victor Bastos, José Rodrigues e o próprio pintor, Cristino e todos olham na direcção do artista que está a pintar. No quadro são também retratados os saloios característicos da região sintrense (olhando para a tela que Anunciação pinta). Síntese de uma pintura de paisagem e de costumes, que em Portugal colheu melhores frutos, se a compararmos com a pintura de paisagem, pela atenção que Cristino dá ao pitoresco pelo traje e expressão dos saloios, notamos que a importância que a paisagem tem neste quadro é subsidiária da dos artistas. O local (Sintra) aparece mais como cenário do que como pintura en plein air. A fraga que serve de pano de fundo a Anunciação é sobretudo cenográfica e a própria rigidez, quer da natureza, quer dos retratados, devolve-nos uma pintura demasiado acabada em atelier, muito contrária aos modelos da pintura moderna europeia.
A revolução possível, iniciada por Anunciação, deve-se ao pouco conhecimento que existia em Portugal sobre a produção artística estrangeira (nomeadamente das escolas inglesa, francesa e alemã). Enquanto que, na literatura (e também na música), as edições corriam por vários países, chegando a Portugal, normalmente, traduções francesas da produção literária Oitocentista, na pintura, o imperativo das deslocações ao estrangeiro para observação das técnicas dos métodos utilizados fez com que, num país em que os artistas pouco conheciam da sua própria paisagem e onde as oportunidades de viajar e estudar no estrangeiro era quase inexistentes, permanecêssemos entre o culto do natural e a arte da paisagem...
O cerne desta questão está na relação que os artistas têm com a memória nacional. Não é demais voltar ao Camões de Garrett e lembrar que este poema tem como leit-motiv a relação (autobiográfica) que o poeta (o narrador — Garrett —, e o narrado — Luis de Camões) tem com a pátria. Da leitura do poema, que já não é épico, fica a ideia de que toda a relação com a poesia (nacional) se afasta da relação do poeta com a memória. A poesia deixa de ter fundamento histórico porque a pátria não dá sentido à poesia nem à memória do poeta. E a figura de Camões enquanto artista incompreendido pelo seu país e seus contemporâneos gera, na pintura, uma das iconografias mais produtivas no Portugal de Oitocentos. O nacionalismo literário exaltado pelos românticos é o que afasta Garrett de Camões e é também o que cria uma atrofia do artista com a sua memória. Não existindo um passado cultural apoiado em quadros mentais estruturados, o nosso romantismo não poderia propor, em vários planos, uma procura coerente com as tradições que a Idade Média nos tinha legado, pois esta memória estava inserida numa enorme floresta de alheamentos, estruturada por hiatos. Sequeira, Garrett, Metrass, Victor Bastos, Soares dos Reis e mais tarde, como adiante veremos, Columbano, retomam continuamente o tema Camões, unidos na atitude de personalizar, na figura romântica do poeta, o desejo e a necessidade de renovação da cultura nacional e a angústia secular motivada pelo sentimento de negação, de desterro de que se sentiam vítimas num país que no passado como no presente, os condenava a Jaus. Se muitos estudos da cultura portuguesa (Eduardo Lourenço e António José Saraiva são bons exemplos) do século XX enfatizaram a imagem de Camões como imagem-símbolo de uma pátria, de uma Mensagem, no século XIX Camões não é só uma imagem, é também um lugar e uma atitude — numa palavra, uma paisagem.
Com efeito, filósofos da Enciclopédia como Diderot e Voltaire eram leitura proibida no Portugal de finais de Setecentos e inícios de Oitocentos e a crítica de arte que então se produzia no país não era, de todo, relevante. Não será demais lembrar que, ainda em 1843, Almeida Garrett (Viagens na Minha Terra) alerta para a necessidade de se viajar pelo país, pois essa era a única forma de o conhecer. Ora, um país que não se conhece, e cujos artistas não viajam, não pode conhecer-se e, nessa medida, não pode produzir um discurso crítico sobre a sua produção artística (não dialoga com a sua memória). Tendo já sido publicado o Diário de W. Beckford (1838), obra que primeiramente guiou o olhar estrangeiro pelo nosso país, Garrett, em pleno Romantismo, sente a necessidade de apelar ao besoin de voyager como forma de conhecimento da nossa cultura e da nossa paisagem. Para discutir a existência e características do Naturalismo em Portugal, ou português, o volte-face com o nosso tempo é imperativo, pois é a partir deste nosso tempo que podemos avaliar, com seriedade e sem os pessimismos catastrofistas que costumam estar associados ao estudo da expressão artística Oitocentista, a consciência que os artistas contemporâneos de um Anunciação ou de um Metrass tinham da sua contemporaneidade.

Na primeira metade do século XIX português, a produção de um discurso sobre a arte foi realizada sob um cenário profundamente híbrido que raramente conciliou formação científica com consciência crítica. Data de 1836 a criação da Academia de Belas Artes em Lisboa e da Academia Portuense de Belas Artes, sem que existisse legislação orientada para o ensino, quer geral, quer artístico. O conde Athanasius Raczynski (1788-1874), correspondente da Sociedade Artística e Científica de Berlim, chegou a Portugal em 1842, no mesmo ano que o conde de Lichnowski. Aqui permaneceu três anos como ministro da corte da Prússia, tendo estudado durante este tempo a arte portuguesa, reflexão que se consubstanciou no seu livro editado em 1846, Les Arts en Portugal. A sua obra constitui o primeiro marco de história e crítica de arte escrito em Portugal, inaugurando assim uma linha de historiografia que só viria a ter descendência com Joaquim de Vasconcelos (1849-1936), considerado o pai da historiografia de arte em Portugal. Justamente estes dois autores, que combinaram formação científica com consciência crítica, tendo por isso o olho clínico necessário para ver para os objectos civilizacionais como factos artísticos, foram exorcizados pela crítica reinante em Portugal, fazendo com que não se compreendesse os vários léxicos que começavam a tomar forma em Portugal. Para se compreender, a título de exemplo, o eclectismo que começava a dominar a arquitectura da segunda metade do século XIX era necessário reivindicar uma memória cultural e artística (nacional e estrangeira) a que a crítica estava, de todo, alheada. Será necessário esperar por Ramalho Ortigão e pelo ferrão de Fialho de Almeida para desentorpecer a crítica de arte portuguesa. À distância de mais de um século O Culto da Arte em Portugal, viagem de Ramalho Ortigão, que já em 1896 vinga por ser um dos poucos documentos críticos escritos por um português que relatam o estado do nosso património e paisagem, surpreende-nos, nos inícios do século XXI, pela sua actualidade — como se permanecêssemos nos “fins do Romantismo” (ou na impossibilidade de dialogarmos com o nosso passado) anunciados criticamente desde o último quartel do século XIX. Para compreender o texto de Ramalho é necessário convocar um ideário que a Geração Romântica (Garrett e Herculano) e depois a Geração de 70 (com Eça de Queirós, Antero de Quental, Jaime Batalha Reis e o próprio Ramalho Ortigão, que começou por se aproximar de Castilho) construíram. O romantismo português (e, latu sensu, o século XIX) desenvolve-se entre a procura de uma identidade através da inventariação de uma memória que não se consegue agarrar e a tentativa de desenvolvimento de estruturas contemporâneas que possibilitem um novo olhar para o país. É a partir da recherche da identidade que o Romantismo se volta para o nascer da nacionalidade e para os edifícios (que deste modo se transformam em monumentos) — porque as pedras também falam (mas é necessário compreender a sua linguagem) —, advindo daí a consciência do imperativo da sua protecção. Se é pela arte que o homem se entende como pertencente a um tempo e a um lugar, a cultura artística nacional é, para Ramalho, tributária da arte nacional (e local). Se nos lembrarmos da crítica acérrima realizada pelo autor aos estrangeirismos na nossa arquitectura de finais de Oitocentos e inícios de Novecentos (os ex-libris de arquitectos e encomendadores nas Avenidas Novas e nos “Estoris”), compreendemos melhor o seu pensamento. Na arquitectura, a adaptação do gótico a um estilo mais caracteristicamente português (o manuelino, que também é uma designação do Romantismo) é encarada como originalidade artística, por ser o resultado de uma reflexão sobre a paisagem. Produzindo uma crítica que em relação à arquitectura do seu tempo é deveras arrasadora, Ramalho mostrará uma faceta completamente antagónica ao revelar-se o crítico do Naturalismo português, tomando Ruskin como exemplo mas sentindo na pele as impossibilidades de um apelo sincero à proximidade do campo, por simplesmente não existir, no Portugal de Oitocentos, a nítida dicotomia cidade/campo. Onde estava a nossa indústria?....

Se definimos as possibilidades do Romantismo português a partir de Cinco Artistas em Sintra (Cristino da Silva, 1855), o Grupo do Leão (Columbano Bordalo Pinheiro, 1885) devolve-nos as várias facetas que o naturalismo revelou na pintura. O primeiro paralelo a estabelecer entre os dois quadros (FRANÇA, 1987) centra-se no elogio do grupo e no reconhecimento de um mestre congregador de determinados ideais. Se em 1855 era Anunciação, em 1885 o mestre é o seu directo sucessor na Academia: António Carvalho de Silva Porto (1850-1893). Á margem dos grupos, e no limiar entre o Romantismo e o Naturalismo, encontramos Alfredo Keil (1850-1907) artista que, como Almada Negreiros e António Pedro no século XX, trabalhou afincadamente várias linguagens artísticas. Músico — a ele devemos o nosso Hino, escrito na tumultuada época pós-ultimatum, ainda monárquica — poeta, pintor, fotógrafo e museólogo. Cumpre aqui destacar o pintor, um dos poucos portugueses onde se nota a evasão na natureza, pela quase ausência de figura humana nos quadros. Contemporâneo da primeira geração naturalista, Alfredo Keil dela de manteve isolado e deve ser notado como ausência na galeria de retratos que Columbano pinta em 1885. Sem a intencionalidade programática do «divino mestre», Keil não cede à fatalidade da narrativa na pintura portuguesa.

Falar da primeira geração naturalista portuguesa é destacar Silva Porto, João Marques da Silva Oliveira (1853-1927) e Henrique César de Araújo Pousão (1859-1884). É com estas três figuras cimeiras que se discutem as possibilidades do Naturalismo português. Silva Porto e Marques de Oliveira são os primeiros pintores portugueses a beneficiar de uma pensão do Estado para aperfeiçoamento de estudos no estrangeiro. Começa por ser intrigante que o primeiro pensionista do estado a estudar paisagem na École de Beaux-Arts tenha sido formado na Academia do Porto (onde não existia essa cadeira), o que desde logo indicia um esforço tremendo de autodidacta. Falamos obviamente de Silva Porto, primeiro pensionista português de estudo de paisagem e que, ao regressar a Portugal em 1879, será convidado para a Academia de Belas-Artes de Lisboa como professor da cadeira de Paisagem, sucedendo a Anunciação, que sucumbira nesse mesmo ano. Silva Porto foi aluno de Yvon e Cabanel e em Paisagem de Beauverie e Groseillez. As frequentes deslocações a Barbizon e a Auvers-sur-Oise permitiram o contacto com Daubigny, que fortemente o influenciaria. Corot, Millet e Courbet também abriram a sua palete de cores. A viagem a Itália, entre 1877-88 terá dado a Silva Porto outra compreensão do sol mediterrâneo. Marques de Oliveira concorreu com Silva Porto, ganhando o pensionato para estudo de Pintura de História. Tendo observado, durante a estadia em França, uma “nova” pintura de ar livre, já completamente instituída pelos pintores de Barbizon nos anos 30/40 do século XIX, Silva Porto e Marques de Oliveira, regressam em 1879 a Portugal (já depois da primeira Exposição dos Impressionistas, no atelier do fotógrafo Nadar) com a boa nova do Naturalismo em pintura. A biografia de Silva Porto a partir de 1879 reduzir-se-á às suas lições de professor (saía com os seus alunos para o campo a pintar, despertando neles o gosto pela pintura sur le motif) e a uma pintura que começou com uma euforia momentânea e terminou pitorescamente. A Condução do Rebanho (1893) pode ser vista como um ícone da pintura final de Silva Porto e, com as devidas ressalvas, de toda a pintura de paisagem portuguesa — se o esplendor da pintura naturalista europeia (inglesa e francesa) é contemporâneo das revoluções industriais (e do consequente abandono do campo), da perda de terreno do campo para a cidade (e por isso pinta-se com a consciência da mutação da paisagem), em Portugal, país sem estradas, com 12% da população a viver nas cidades e uma indústria quase inexistente, que consciência tinham os pintores do efémero da paisagem? 88% do território português estava ligado a este pastor que conduz o rebanho, que se pode distinguir ao longe pela mancha de pó que vai deixando ao passar... E o perpetuar de um ideal de pintura ar-livrista defendido pelos Naturalistas entrou pelo século XX sintetizado no Grupo Silva Porto (1927-1949) numa época em que as discussões sobre o que hoje podemos legitimamente caracterizar como paisagens se situava no interior do Homem e não na pintura como reflexo do que se vê na natureza.
A pintura de paisagem teve em Marques de Oliveira, e apesar deste artista ter ficado limitado à docência da Pintura de História, uma abertura na palete de cores que não encontramos em Silva Porto. Admirando Corot e Boudin, conseguiu um entendimento pictural do motivo bem visível na sua percepção das praias do Norte, que não encontramos em Silva Porto, como se a pintura de paisagem em Portugal estivesse condenada à sobrevivência pelo autodidactismo...
Henrique Pousão termina este ciclo e destaca-se pela singularidade da sua pintura. Se analisarmos um pintor pelos caminhos que este abre na pintura, e pelo entendimento das paisagens que este nos devolve contemporaneamente, é Pousão que, entre 1882 e 1884, ultrapassou o próprio naturalismo, strictu sensu. Sucedendo a Silva Porto como pensionista, teve no entanto de partir para Roma, em busca de um clima mais temperado para a sua tísica. Nos dois anos que permanece em Capri, Pousão abre as suas telas ao sol do Norte de Itália, sendo As Casas Brancas de Capri (1882), Janela das Persianas Azuis (N. Dat.) e Paisagem — Anacapri (1883?) verdadeiros marcos de abertura de um caminho que na pintura portuguesa não foi (e não podia) ser seguido.

É com José Malhoa (1855-1933) e Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929) que se discute, entre o retrato e a pintura de costumes, ou entre a luz e a sombra, o fim do século XIX português e os limites do nosso Naturalismo. Os dois autores definem picturalmente maneiras de ver que nos permitem falar de uma continuidade do século XIX em pleno século XX. Continuando as poéticas do sublime e do pitoresco, podemos dizer que Malhoa está para o pitoresco, assim como Columbano está para o sublime. Para estes artistas, a essência da natureza não se encontra na paisagem da pedra (como em Anunciação ou em Cristino da Silva), mas na paisagem humana. Malhoa não tem, como os paisagistas franceses, o desejo de evasão. Daí a imensidão de paisagens povoadas de gente que formam a sua pintura. Se em Columbano encontramos a solidão e a melancolia nas paisagens dos rostos que pinta, sendo necessário procurar a matriz da sua pintura não nos paisagistas seus contemporâneos, mas em Rembrandt, Velásquez e Goya, com Malhoa dialogamos num tempo suspenso que se estende por quase todo o século XX português, entre um campo e um povo dispersos pelo país, massa anónima que ri e chora, bebe, canta e namora....
Malhoa não estudou fora de Portugal e, durante algum tempo foi um mero pintor de domingos, pela necessidade de conjugar a sua actividade artística com a de comerciante. Talvez por isso nos seus quadros encontremos sempre uma geografia que se situa entre Lisboa e as Caldas da Rainha, sendo que, na distância entre a cidade e o campo não encontramos, através da sua pintura, elementos que distingam claramente os dois universos.
Cócegas (1904), de Malhoa, é justamente uma faceta do namoro camponês, em perfeita harmonia com as forças da terra. Num momento de lazer, dois camponeses descansam e vão aproximando os seus corpos em torno de uma conversa. È o sol (dado pelo intenso amarelo) que convida e exige esta pausa num trabalho regulado por um tempo que ainda é cíclico, e convida à conversa e ao aproximar dos corpos. Em 1904, 1890 ou 1950 (e, arriscamos, em 2003...) é possível encontrar ecos desta imagem (como também de Os Bêbados, 1907 e de A Volta da Romaria, 1901), com algumas alterações, decorrentes do tempo, mas com o mesmo substrato... Por isso a análise da pintura de Malhoa é tão produtiva quando encarada numa perspectiva sociológica (e o século XX bem aproveitou essa produtividade...) o que muitas vezes desleixou uma análise pictural. É no entanto, neste pintor, que encontramos a síntese de uma linha evolutiva que se desenvolve do Romantismo ao Naturalismo: Malhoa aprende de Anunciação o gosto pela paisagem e de Silva Porto o entendimento da pintura en plein air. E na sua pintura cruza-se o animalismo, os costumes e um claro entendimento da paisagem portuguesa (sobretudo do sol português...). O quadro impressionista de Malhoa (Outono, 1919) não tem, sequer na sua pintura, seguimento. E como poderia ter, num século que já tinha vira nascer Orpheu (1915), Amadeu Sousa Cardoso, o Manifesto Anti-Dantas de Almada Negreiros (1916) e o próprio Portugal Futurista (1917), o abstraccionismo lírico de um Kandinsky e a I Guerra Mundial?
Se em Malhoa encontramos uma pintura centrífuga, para entendermos a pintura do Columbano temos de propor uma análise interior (já própria de um entendimento do século XX) que se encontra nos antípodas da de Malhoa.
As paisagens dos rostos foram uma verdadeira obsessão para Columbano. O olhar deste artista é já o de um cinéfilo, que capta o pequeno movimento do rosto e o eterniza...
A Chávena de Chá (1989), é um exemplo através do qual podemos entender este pintor (e talvez por esse motivo Columbano nunca o quis vender). Num claro acordo com a poética de claro-escuro de Rembrandt, o quadro fala-nos de valores intimistas, de um monólogo interior que a personagem retratada, sua mulher, na sua quietude, cria com a chávena de chá, ou com o vapor que dela sai... O movimento da chávena de chá opõe-se à quietude da personagem, como se esta estivesse num tempo de espera... O facto de a mulher retratada não estar virada para o pintor, permanecendo completamente só com os seus pensamentos no recolhimento do lar, afogada na penumbra de uma sala povoada por uma natureza-morta, a chávena e o samovar, recolhida e quente, mas ao mesmo tempo não estático (pela notação leve do movimento da chávena de chá) o que revela um olhar do pintor que já é, de algum modo, de realizador...
Columbano desenvolve o retrato, fazendo dele uma paisagem. Um pintor seu contemporâneo, António Carneiro ((1872-1930), que se dividiu entre a paisagem já das sensações e o retrato já ultrapassa o Naturalismo.
Se o Naturalismo pretendia colocar a nu todas as patologias sociais e, ao mesmo tempo, fotografar a natureza sem idealização, é em Columbano que podemos identificar, através do seu Antero de Quental (1889), um pathos que ceifou a nossa cultura artística Oitocentista: a morte antecipada. Da linha que iniciámos com o Camões de Garrett, e já bem próximo da paisagem-símbolo de António Carneiro, pintor e poeta, quando pinta o seu Retrato de Guerra Junqueiro (1907) ou o seu próprio Auto-Retrato (1918) o retrato de Antero, que podemos consideram um retrato do próprio pintor, por interposta pessoa, devolve-nos um ninguém! que não é de todo garretiano. É antes o único eco possível da nossa pintura. Columbano e Carneiro viveram rodeados de grupos de pensadores e poetas e vivem da angústia e do sentimento de decadência experimentados pelos seus companheiros. Se podemos associar Carneiro ao sentimento decadentista de Manuel Laranjeira, Columbano é o pintor de Antero. E é uma imagem de angústia e desespero, mais do que o próprio Antero de Quental, teorizador das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, do génio que era um santo, como Eça lhe chamou postumamente, Columbano fixa a imagem do fracasso assumido da Geração de 70, expresso n` Os Maias («falhámos a vida!»). Pálido e triste, na dor do seu cansaço da vida, vestido de cavaleiro andante que já entrou no palácio da ventura e lá encontrou silêncio, escuridão e nada mais, laica alegoria da desgraça e da descrença no homem, numa clara aproximação a algumas figuras atónitas de Velásquez, este Antero é a síntese de todos os não-lugares que passaram ao longo de um século pela pintura e literatura portuguesas. As possibilidades do Naturalismo português têm necessariamente de ser vistas a partir do seu mais moderno pintor — se os artistas não encontram um lugar no seu país, e se mesmo os poucos que beneficiam de uma formação em Paris ou em Roma não conseguem (ou não querem) pensar na tela o seu entendimento da paisagem, porque o público está entretido no São Carlos ou, como só poderia estar, no campo, entre o trabalho e as cócegas, o melhor retrato de um naturalismo que se passeia entre vários cemitérios, numa sarabanda de luz e de sombra, é o Antero de Columbano.



Bibliografia Consultada:

FRANÇA, José-Augusto
1990. A Arte em Portugal no Século XIX. Lisboa: Bertrand Editora, (1ª ed. 1967), ed. ut. 3ª ed., vols. I e II

ORTIGÃO, Ramalho
1896. «O Culto da Arte em Portugal», In Arte Portuguesa. Vol. I. Lisboa: Clássica Editora, 1ª Ed., 1943

SOARES, Elisa et. Al.
2001. Museu Nacional Soares dos Reis. Pintura Portuguesa 1850-1950. IPM, MNSR, 2ª ed.
Liliana Dias Carvalho

5 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Excelente artigo!

victo rosa disse...

MUITO BOM...APROVEITEI PARA (RE)ESTUDAR!

victo rosa disse...

muito bom aproveitei para (re)estudar o anturalismo,claro!

Anónimo disse...

Obrigado por Blog intiresny