quinta-feira, abril 20, 2006

La Cécité du Dessinateur - O Desenho entre a História da Arte e a Arte Digital


«O ter lugar das coisas não tem lugar no mundo.
A utopia é a própria topicidade das coisas.»
Giorgio Agamben



Quando tentamos definir Desenho, pensamos na representação gráfica de uma ideia, sendo desenhar o acto de tornar visível um pensamento, independentemente dos meios utilizados. Implica uma relação com a mão e o suporte onde se desenha. Mobiliza o corpo do sujeito, numa relação da mão com o cérebro, resultando assim o desenho (enquanto produto final) de movimentos de um corpo. No desenho tradicional, o resultado da acção do artista torna-se visível pela sua materialidade. Na era do digital, o desenho assistido pelas novas tecnologias é-nos revelado pela sua imaterialidade.

As novas práticas do desenho estão associadas também a novas percepções da realidade. As tecnologias necessitam de um corpo como interface para que haja interactividade entre o mundo real e o mundo fantasma. Não há simulacro sem haver a construção de um mundo, de um universo – o simulacro não pode existir apenas no mundo da representação. Por via da utilização das tecnologias, a relação processual do desenho sofre alterações. O computador, através de programas
[1] onde se encontram réplicas de objectos do mundo real (lápis, borracha, tintas) permite que se crie uma interactividade entre o mundo real e o mundo fantasma – numa palavra, simula-se um real perceptivo, através do qual a imagem aparece ligada à criação artística. O conceito de autoria da obra de arte é aqui problemático, uma vez que o computador executa os comandos que o desenhador tipifica, mas estes comandos são decifrados pela máquina através de uma linguagem não perceptível ao homem – artificial. O homem enquanto ser digital[2] passa a interagir através dos meios multimédia, com imagens digitais, que representam um processo revolucionário de reprodução, manipulação e apuramento da imagem ou de elementos dessa imagem.

Coloca-se hoje a questão de como viver através dos interfaces numa realidade que, vivendo dos objectos, do design, se pode designar pela sua não-objectualidade, numa Era que já foi apelidada como sendo a do Design Total
[3].

Para Arthur Danto
[4] a arte Pop e, sobretudo Andy Warhol marcam o fim da arte — o fim de um tipo de arte que é compreendido pela história da arte, que agrupa estilos, relaciona movimentos, explica obras particulares e, sobretudo, parece mostrar uma linha quase contínua de evolução e progresso artístico. Já Yves Michaud, em L`Art à L`État Gazeux, afirma que não chegámos ao fim da arte: simplesmente equacionamos o final da idade “objectual” da arte. Deixou de haver a necessidade de objectos artísticos. As obras desapareceram pelo excesso da sua produção[5]. Torna-se curioso analisar esta afirmação à luz da prática do desenho, uma vez que a sua prática tem ocorrido quer na forma “analógica “, quer na forma digital, ou seja na sua forma material e imaterial.

Jonathan Crary, no seu livro Suspensions of Perception
[6], procura explicar como é que a Modernidade Ocidental, desde o século XIX, fez com que os indivíduos se definissem em torno daquilo a que prestam atenção (pelos sentidos). Para Crary, o que se nota na sociedade ocidental do final do século XX é justamente uma “deficiência da atenção”, que talvez se explique pela ideia que o autor receber de Walter Benjamin – recebermos tudo em estado de distracção. O livro de Crary resulta então da tentativa de criar uma genealogia da atenção, que o autor baliza no século XIX, mais concretamente na segunda metade de Oitocentos (onde se define uma crise da percepção), e a partir dessa genealogia, determinar o seu papel na subjectividade contemporânea. Crary argumentará que a cultura do espectáculo não encontra o seu fundamento na necessidade de fazer um sujeito “ver”, mas cimenta-se em estratégias nas quais os indivíduos estão isolados, separados «and inhabit time as disenpowered.»[7]
A percepção torna-se, para a época contemporânea, um termo problemático: o século XIX quis restaurar a noção latina de “tornar cativo”, mesmo quando era evidente a impossibilidade de fixar e possuir determinado objecto. O que é importante para o poder institucional, desde os finais do século XIX, é assegurar que a função perceptiva garante um sujeito que é produtivo e capaz de socializar, integrando-se e adaptando-se a um grupo.
A atenção foi inevitavelmente o ingrediente de uma concepção subjectiva da visão, quer ao nível da produção, quer ao nível da recepção das obras de arte. Os escritos de Walter Benjamin sobre a perda da aura da obra de arte — a passagem do seu valor cultural tradicional (de culto) ao valor de exposição
[8], permitem-nos identificar o triângulo existente desde sempre entre o artista, a obra e o público. Procurar o «efeito específico da arte»[9] é, desde a Poética de Aristóteles, perseguir o prazer que provém do terror e piedade, através da imitação verosímil das acções dos homens, e o que deriva da estrutura perfeita do mito como ser vivente[10], ou seja da história como um todo que se actualiza pelo efeito, catártico ou não, produzido, pela leitura, no leitor/espectador. Ao trazer Aristóteles à colação, verificamos que na era do digital, e nas novas formas de construção do desenho, não é possível falar em organons, porque não é, muitas vezes possível percepcionar os objectos como um todo, ou sequer como soma das partes. Também o carácter mimético da obra de arte é deslocado do seu “objecto” para os meios da sua produção – o lápis, a borracha, o pincel, as tintas, a caneta.
No desenho digital, podemos sobrepor todos os elementos lá colocados, a partir de movimentos quase instantâneos. Daí que a expressão de José Jimenez «tornámo-nos pobres»
[11] ganhe aqui, aplicada a esta prática artística, um sentido muito particular. Como diz Jimenez, «tornámo-nos pobres porque na cultura contemporânea tudo se sobrepõe: linguagens, tempos, espaços. Na era das comunicações de massa a palavra (narrativa, poética, filosófica…) pode fazer-se valer tão-só nos interstícios do ruído, através da acumulação redundante e vazia, nos espaços confinados onde a situa a banalidade discursiva dominante, puramente serial, repetitiva. Que nivela e iguala qualquer tipo de expressão, independentemente dos seus sentidos e intencionalidade.»[12]

Para Yves Michaud, durante o século XX artístico, todo o movimento e toda a inovação que se presta à etiqueta de um –ismo chega ao nouveau-realisme e ao minimalismo dos anos 50 e 60 onde se desenvolve a arte da performance, a arte corporal, a arte da atitude, a arte conceptual, a arte da linguagem, a arte do objecto específico que não é nem pintura nem escultura dentro do minimalismo
[13]. Tanto a Pop como o Minimalismo interrogam o problema da recepção do objecto artístico. O livro de Michaud explica-se através de um paradoxo: se a beleza e, concomitantemente o triunfo da estética se cultivam, se difundem, se consomem e se celebram num mundo que vive de obras de arte, como é que tudo se evapora e se torna “gasoso”?
Em «A Humanidade em Tempos Sombrios: Pensamento sobre Lessing», Hannah Arendt escreve: «Nada no nosso tempo é mais duvidoso, penso eu, do que a nossa atitude para com o mundo, nada menos garantido do que o acordo, que uma distinção nos impõe e que a sua existência afirma, com aquilo que se manifesta em público. No nosso século até mesmo o génio só se conseguiu desenvolver em conflito com o mundo e o domínio público, embora naturalmente encontre, como sempre fez, a sua forma própria de acordo com o seu público. Mas o mundo não é a mesma coisa que as pessoas que o habitam. O mundo está entre as pessoas, e este espaço-entre é hoje — muito mais do que os homens, ou mesmo o homem, ao contrário do que muitas vezes se pensa — o objecto de maiores preocupações e o domínio das convulsões mais evidentes em quase todos os países do globo. Mesmo onde o mundo ainda se encontra numa relativa ordem, o domínio público perdeu a capacidade de iluminação que originalmente fazia parte da sua natureza própria.»
[14].
A citação é talvez demasiado longa, mas necessária para entender o que da estruturação do pensamento de Arendt podemos convocar para o nosso trabalho. Escrito em 1959 e publicado pela primeira vez em 1960, trazendo Lessing para a contemporaneidade, a questão que importa à autora é «a de saber até que ponto devemos agarrar-nos à realidade, mesmo num mundo tornado inumano, para que a humanidade não se reduza a uma palavra oca ou a um fantasma»
[15]. Não nos iremos deter nas emigrações interiores de que fala Arendt: lendo o texto no contexto epocal, interessam-nos aqui expressões como «espaço-entre», «agarrar-nos à realidade» e «fantasma». A autora, a propósito de Lessing, fala acerca das tentativas de criação de mundos alheios à realidade como forma de escape à compreensão do mundo, sendo que, sempre que Arendt diz mundo, é legítimo substituir esta palavra por sociedade. Justificando a posição de Lessing como contrária a esta atitude (a de alheamento do mundo exterior), a autora afirma que o filósofo, tendo embora sido um incompreendido no seu tempo, não se evadiu, dado que acreditava na sustentação do pensamento em diálogo com o mundo: não eram as coisas em si que interessavam a Lessing, mas sim a relação que os conceitos/objectos estabeleciam com o público, dialogando com ele — e é nesta atenção à recepção das coisas pelo público que Lessing pode ser trazido para o nosso tempo.
De que modo é que podemos convocar o pensamento de Arendt para um trabalho que pretende reflectir as relações entre o desenho “analógico” e o desenho digital? Antes de mais o desenho é uma imagem. O digital remete-nos de imediato para uma linguagem codificada, o que suspende o imperativo da matéria, ou da materialização. A partir do digital, o desenho ganha uma nova fisicalidade – o monitor do computador é o espaço visual do ambiente de trabalho, mas também funciona como o suporte do desenho. Por isso, é o outro olho do desenhador, aquele onde talvez se descobrirá um palimpsesto virtual que devolva aos desenhos digitais a memória que hoje não têm, por não ser possível, quando se termina o desenho, identificar onde residem as alterações que o desenhador foi indicando.
O desenho tradicional só existe enquanto matéria – os enganos e alterações que possamos verificar têm a mesma durabilidade do suporte que sustenta o desenho – normalmente, o papel.

Talvez seja possível estabelecer ligações entre a topicidade do desenho tradicional e a u-topia do desenho digital. Se a utopia se caracteriza por ser um anti-espaço, por recusar o lugar em proveito do protótipo, a identidade do desenho que aparece nas artes digitais, reflecte as interrogações que, na cultura contemporânea se colocam em torno da percepção do espaço. Se o desenho digital não se tipifica, a priori, por uma limitação espacial que no tradicional se encontra, simplesmente, pelo tamanho de uma folha, podemos enquadrar o digital numa estética da desaparição, do desvanecimento, uma vez que as imagens se caracterizam pela sua fugacidade, pela memória da máquina da visão, ou melhor, da persistência de uma imagem na retina
[16].
[1] Nomeadamente o Paint e o Corel Draw.
[2] Cf. Nicholas NEGROPONTE. Being Digital, Alfred A. Knopf, New York, 1992.
[3] Expressão utilizada por Maria Teresa Cruz, no seu texto, «O Artificial ou A cultura do design total», em www.interact.com.pt
[4] Cf. Arthur C. DANTO. After The End of Art, Contemporary Art and The Pale of History. Princeton, Princeton University Press, 1997
[5] Cf. Yves MICHAUD. L`Art à L` État Gazeux, Essai sur le triomphe de l`esthétique. Paris, Ed. Stock, 2003
[6] Cf. Jonathan CRARY. Suspensions of Perception – Attention, Spectacle and Modern Culture. Cambridge, Massachusetts: M.I.T. Press, 2ª Ed., 2000
[7] Idem, P. 3
[8] Cf. Walter BENJAMIN, «A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica» In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Ed. Relógio d` Água, s. Ed., 1992
[9] Cf. Aristóteles. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Lisboa: IN-CM, 4ª ed., 1994, p. 148. As referências a esta obra terão como base esta edição
[10] «Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um organismo vivente pequeníssimo não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria belo, grandíssimo (porque faltaria a visão do conjunto, escapando à vista dos espectadores a unidade e a totalidade; [...] Tal como os corpos e organismos viventes devem possuir uma grandeza, e esta bem perceptível como um todo, assim também os mitos devem ter uma extensão bem apreensível pela memória.» In Op. Cit., pp. 113-114
[11] JIMÉNEZ, José. A Vida Como Acaso. Complexidade do Moderno,. Lisboa : Ed. Vega, 1ª Ed., 1997, p. 9
[12] Idem, p. 12 (O sublinhado é nosso)
[13] Cf. Yves MICHAUD. L`Art à L` État Gazeux, Essai sur le triomphe de l`esthétique. Paris, Ed. Stock, 2003
[14] Cf. Hannah ARENDT. «A Humanidade em Tempos Sombrios: Pensamentos sobre Lessing» in Homens em Tempos Sombrios. Lisboa: Ed. Relógio d`Água, 1991, pp. 12-13 (Os sublinhados são nossos)
[15] In A. Arendt, Op. Cit., p. 33
[16]
Cf. Paul VIRILIO. La Machine de Vision , Colection L’ Espace Critique, dirigé par Paul Virilio, Paris, Éditions Galilée, 1988, pp : 125-126.



Liliana Dias Carvalho

1 comentário:

José-Luis FERREIRA disse...

Apreciei - muito particularmente - este magnífico estudo, revelador de excelentes conhecimentos, partilhados, aliás, com assinalável generosidade.
Gostaria de citar (dele) alguns extractos descontextualizados, num livro que me encontro a ultimar.
Muito gratificado lhe ficarei, pela utilização, que, assim, lhe solicito.
J-L.F.
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JOSÉ-LUIS FERREIRA

Sociólogo
Escritor e Ensaísta | Investigador Crítico de Artes Plásticas
Consultor de Empresas (Gestão Estratégica/Organização&Métodos/Mkt Creative)
Presidente do Conselho-Geral da ANAP – Associação Nacional dos Artistas Plásticos | a Membro do Comité Nacional da AIAP / UNESCO
Director de CLASS-A International Contemporary Art Galleries – CASCAIS/SINTRA, Portugal
Consultor Técnico eventual para FIRSTGALLERY, sa – LISBOA, Portugal
Consultor Permanente junto de Oro Faber Artes e Edição L.da – LISBOA, Portugal
Delegado-Correspondente, em Portugal, do Instituto ETONA de Angola, Luanda

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