quinta-feira, agosto 24, 2006

Uma Blogantologia VIII - Manuel Bandeira

A CANÇÃO DAS LÁGRIMAS DE PIERROT

I

A sala em espelhos brilha
Com lustres de dez mil velas.
Miríades de rodelas
Multicores - maravilha! -

Torvelhinham no ar que alaga
O cloretilo e se toma
Daquele mesclado aroma
De carnes e de bisnaga.

E rodam mais que confete,
Em farândolas quebradas,
cabeças desassisadas
Por Colombina ou Pierrete

II
Pierrot entra em salto súbito.
Upa! Que força o levanta?
E enquanto a turba se espanta,
Ei-lo se roja em decúbito.

A tez, antes melancólica,
Brilha. A cara careteia.
Canta. Toca. E com tal veia,
com tanta paixão diabólica,

Tanta, que se lhe ensangüentam
Os dedos. Fibra por fibra,
Toda a sua essência vibra
Nas cordas que se arrebentam.

III

Seu alaúde de plátano
Milagre é que não se quebre.
E a sua fronte arde em febre,
Ai dele! e os cuidados matam-no.

Ai dele! e essa alegria,
Aquelas canções, aquele
Surto não é mais, ai dele!
Do que uma imensa ironia.

Fazendo à cantiga louca
Dolorido contracanto,
Por dentro borbulha o pranto
Como outra voz de outra boca:

IV

- "Negaste a pele macia
À minha linda paixão
E irás entregá-la um dia
Aos feios vermes do chão...

"Fiz por ver se te podia
Amolecer - e não pude!
Em vão pela noite fria
Devasto o meu alaúde...

"Minha paz, minha alegria,
Minha coragem, roubaste-mas...
E hoje a minh'alma sombria
É como um poço de lástimas..."

V

Corre após a amada esquiva.
Procura o precário ensejo
De matar o seu desejo
Numa carícia furtiva.

E encontrando-o Colombina,
Se lhe dá, lesta, . socapa,
Em vez de beijo um tapa,
O pobre rosto ilumina-se-lhe!

Ele que estava de rastros,
Pula, e tão alto se eleva,
Como se fosse na treva
Romper a esfera dos astros!...

Uma Blogantologia VII - Manuel Bandeira

Manuel Bandeira (Recife PE, 1884 - Rio de Janeiro RJ, 1968)

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Uma Blogantologia VI - João Roiz de Castel-Branco

Cantiga, Partindo-se

Senhora, partem tão tristes
Meus olhos por vós, meu bem.
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
Tão doentes da partida,
Tão cansados, tão chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.

Partem tão tristes os tristes
Tão fora de esperar bem.
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Blogoletras I - Suzanne, Leonard Cohen

Suzanne(letra e música de Leonard Cohen)


Suzanne takes you down to her place by the river
You can hear the boats go by
You can spend the night forever
And you know that she's half crazy
And that's why you want to be there
And she feeds you tea and oranges
That came all the way from China
And just when you want to tell her
That you have no love to give her
She gets you on her wavelength
And lets the river answer
That you've always been her lover

And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you think you maybe trust her
'Cause she's touched your perfect body with her mind

And Jesus was a sailor
When he walked upon the water
And he spent a long time watching
From a lonely wooden tower
And when He knew for certain
Only drowning men could se Him
He said "All men shall be sailors,
Then, until the sea shall free them"
But He Himself was broken
Long before the sky would open
Forsaken almost human,
He sank beneath your wisdom like a stone

And you want to travel with Him
And you want to travel blind
And you think you maybe trust Him
For He's touched your perfect body with His mind

Suzanne takes you down to her place by the river
You can hear the boats go by
You can spend the night forever
And the sun pours down like honey
On our lady of the harbor
And she shows you where to look
A mid the garbage and the flowers
There are heroes in the seaweed
There are children in the morning
They are leaning out for love
And they will lean that way for ever
While Suzanne holds her mirror

And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you think you maybe trust her
'Cause you've touched her perfect body with your mind

Continuando num espírito Dada




Dada - Marcel Duchamp


Uma Blogantologia V -PRIMEIRO MANIFESTO DADÁ

Zurique, 14 de Julho de 1916

Hugo Ball

Dadá é uma nova tendência da arte. Percebe-se que o é porque, sendo até agora desconhecido, amanhã toda a Zurique vai falar dele. Dadá vem do dicionário. É bestialmente simples. Em francês quer dizer "cavalo de pau". Em alemão: "Não me chateies, faz favor, adeus, até à próxima!" Em romeno: "Certamente, claro, tem toda a razão, assim é. Sim, senhor, realmente. Já tratamos disso." E assim por diante.
Uma palavra internacional. Apenas uma palavra e uma palavra como movimento. É simplesmente bestial. Ao fazer dela uma tendência da arte, é claro que vamos arranjar complicações. Psicologia Dadá, literatura Dadá, burguesia Dadá e vós, excelentíssimo poeta, que sempre poetastes com palavras, mas nunca a palavra propriamente dita. Guerra mundial Dadá que nunca mais acaba, revolução Dadá que nunca mais começa. Dadá, vós, amigos e Também poetas, queridíssimos Evangelistas. Dadá Tzara, Dadá Huelsenbeck, Dadá m'Dadá, Dadá mhm'Dadá, Dadá Hue, Dadá Tza.
Como conquistar a eterna bemaventurança? Dizendo Dadá. Como ser célebre? Dizendo Dadá. Com nobre gesto e maneiras finas. Até à loucura, até perder a consciência. Como desfazer-nos de tudo o que é enguia e dia-a-dia, de tudo o que é simpático e linfático, de tudo o que é moralizado, animalizado, enfeitado? Dizendo Dadá. Dadá é a alma-do-mundo, Dadá é o Coiso, Dadá é o melhor sabão-de-leite-de-lírio do mundo. Dadá Senhor Rubiner, Dadá Senhor Korrodi, Dadá Senhor Anastasius Lilienstein.
Quer dizer, em alemão: a hospitalidade da Suíça é incomparável, e em estética tudo depende da norma.
Leio versos que não pretendem menos que isto: dispensar a linguagem. Dadá Johann Fuchsgang Goethe. Dadá Stendhal. Dadá Buda, Dalai Lama, Dadá m'Dadá, Dadá m'Dadá, Dadá mhm'Dadá. Tudo depende da ligação e de esta ser um pouco interrompida. Não quero nenhuma palavra que tenha sido descoberta por outrem. Todas as palavras foram descobertas pelos outros. Quero a minha própria asneira, e vogais e consoantes também que lhe correspondam. Se uma vibração mede sete centímetros, quero palavras que meçam precisamente sete centímetros. As palavras do senhor Silva só medem dois centímetros e meio.
Assim podemos ver perfeitamente como surge a linguagem articulada. Pura e simplesmente deixo cair os sons. Surgem palavras, ombros de palavras; pernas, braços, mãos de palavras. Au, oi, u. Não devemos deixar surgir muitas palavras. Um verso é a oportunidade de dispensarmos palavras e linguagem. Essa maldita linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas gastaram. A palavra, quero-a quando acaba e quando começa.
Cada coisa tem a sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em coisa. Porque é que a árvore não há-de chamar-se plupluch e pluplubach depois da chuva? E porque é que raio há-de chamar-se seja o que for? Havemos de pendurar a boca nisso? A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a palavra, meus senhores, é uma questão pública de suprema importância.

segunda-feira, agosto 21, 2006

Vou agora de partida


Lembrando Ferreira de Castro

Uma Blogantologia IV - Alberto de Lacerda

Imagem

No firme azul do desdobrado céu
Decantarei a mínima magia
Das sensações mais puras, melodia
Da minha infância, onde era apenas Eu.

Da realidade nua desce um véu
Que, já sem mar, apenas maresia,
me vem tecer aquela chuva fria,
Que prende esta janela ao claro céu.

Despido o ouropel desvalioso,
Já não apenas servo, mas o Rei
Da luz da minha lâmpada nomeia,

Assim procuro o centro misterioso
Do mundo que hoje habito, onde serei
Concêntrica expressão da vida inteira.

Uma Blogantologia III - Erich Fromm

Todos estamos determinados pelo facto de nascermos humanos e, consequentemente, temos de escolher os meios juntamente com os fins. Não devemos confiar em alguém que nos salve, mas conhecer ber o facto de que as escolhas erradas nos tornam incapazes de nos salvarmos.
Do Coração do Homem

Blogantologia II - James Murphy

Um português pode fretar um navio para o Brasil com menos dificuldade do que lhe é preciso para ir a cavalo de Lisboa ao Porto.

Travels in Portugal, 1795

Blogantologia - Uma Explicação

A minha "blogantologia" parte de um desejo adolescente de criar o "livro dos meus livros", ou seja, o conjunto de excertos que mais gostei de ler. Tenho-o espalhado em diversos papéis, muitos deles serão já irrecuperáveis. O que se seguirá parte então desta ideia já com doze anos, que não prima pela originalidade, mas pela vontade de conservar a memória do que li. Não farei distinção entre poesia, prosa, ensaio ou teatro. Isso ficará para outro tempo e outros tempos. O Bocage foi o primeiro.

domingo, agosto 20, 2006

Uma Blogantologia I - Bocage

Como o Poeta se Retrata e Julga a sua Obra

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,

Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.

De cerúleo gabão não bem coberto,
Passeia em Santarém chuchado moço,
Mantido às vezes de sucinto almoço,
De ceia casual, jantar incerto;

Dos esburgados peitos quase aberto,
Versos impinge por miúdo e grosso.
E do que em frase vil chamam caroço,
Se o quer, é vox clamantis in deserto.

Pede às moças ternura, e dão-lhe motes!
Que tendo um coração como estalage,
Vão nele acomodando a mil pexotes.

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
Cercado de um tropel de franchinotes?
É o autor do soneto: é o Bocage!

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores.
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração dos seus favores.

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.
Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados.

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania.

Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco.

Duarte Belo, O Vento Sobre a Terra

Caminhar. Pernoitar à beira do leito dos rios do Inverno, onde flui o tempo. Acordar com a chuva no rosto. Ouvir ao longe o ladrar dos cães nos pequenos povoados ou, do alto das serras, o comboio a percorrer as terras baixas, no crepúsculo. Olhar os campos de cereais, sentir o cheiro do pão. Beber a água das fontes esparsas. Sentir os trilhos indeléveis da paisagem. Atravessar cidades e olhares diferentes do nosso. Viver a exaustão de um cansaço extremo, o desalento, o imenso calor, o gelo e o medo. Sentir a solidão. Perder o Norte. Oferecer a dignidade de uma face despojada à força de uma estranha vitalidade avassaladora. Renascer, reinventar a nossa condição humana, sentir uma energia renovada e misteriosa que nos toma os passos.

Domingos em Lisboa, depois das férias


sábado, agosto 19, 2006

Roberto Nobre, algumas imagens





Roberto Nobre e um artigo sobre cinema

Artes - Letras - Ciências Suplemento do n.º 271 do "Litoral"Dezembro de 1959, Ano I, n.º 4pág. 3 e 4

As imagens têm voz...
por ROBERTO NOBRE


À estética da mais retardatária das artes, a sétima, falta-lhe um passado longo e dignificante que lhe dê austero prestígio e nobreza. Foi, quando nas­ceu, considerada como que apócrifa, irmã espúria das outras geniais 6 artes, a maioria destas com milénios de glória. Nascera na idade mecânica. Vivia de apropriações que fazia às outras artes. Anatole chamou aos cinemas «antros escuros donde se sai com vergonha de ser homem» — e Anatole não era um pudico moralista, nem, decerto, lhe deram, então, nenhum conhaque inebriante que se parecesse ao ardor escaldante de «Le Diable au corps» ou «Les Amants». Bergson disse em 1914: «Fui ao cinema. Nada deve deixar o filósofo indiferente» — como quem se desculpa, pois nada, nem mesmo essa cousa «degradante », que é o cinema, deve ser indife­rente ao filósofo. Depois, alguns intelectuais leram complacentemente o que diziam os Delluc, os Canudo e outros pioneiros do ensaísmo da nova estética. Os futuristas terçaram armas pela nova arte, Marinetti, Apollinaire, Cocteau. Vouillermoz comparou os seus ritmos aos da música, de que era autorizado crítico. René Schwob, em 1929, procurou, com audácia, surpreender a filosofia da originalidade da nova arte. Esta, porém, baseava-se, disse, exactamente em ela ser muda. O seu livro, de resto um ensaio muito belo de crítica de arte, chamou-se mesmo «Uma Melodia Silenciosa». Pelo seu ritmo de plástica em movimento, transmitia aos olhos uma melodia de sensibilidade paralela à dos sons musicais aos ouvidos. Não deveria ser mesquinhamente directa, «fotográfica», narrativa, mas alusiva, como o são a música ou a poesia. Assim, a sua razão de ser era, como todas as artes, de ordem subjectiva. No entanto, sempre oposta ao palco. Schwob asseverou mesmo: «o cinema não vale senão pela sua oposi­ção irredutível ao teatro». Bernard Shaw foi, como Anatole, inimigo confessado dos tais «antros escuros». Na palavra, escrita ou falada, é que estava o génio humano. O cinema de então era formado por imagens intercaladas de legendas. Ele, portanto, só seria suportável quando... cons­tituído unicamente por esses letreiros! Parecia uma «boutade», mas ele era sincero no seu desprezo.
Tivemos, então, os estetas do cinema «puro», os grandes artistas como Vertoff, Ruttmann, etc., para os quais a independência do cinema se degradava quando ele descia» a contar uma historieta. Isso era para os romances, para o palco. Deveria ser apenas uma sinfonia plástica.
Mas o advento do cinema sonoro chegou e teve o seu êxito total: deixou de haver cinema mudo. As restrições de Eisenstein e até a heróica obstinação de mudez, mantida longamente por Chaplin, foram vencidas. Bernard Shaw, quando o cinema se tornou canoro e palrador, dei­xou, finalmente, adaptar as suas obras. Asquit e Leslie Howard fizeram de «Pigmaleão» um êxito memorável. E ele pôde dizer, logicamente, que não tinha mudado. O cinema é que viera ao seu encontro.
Irrompeu, então, uma enxurrada de mesquinho teatro filmado, horrível, palavroso, idiota. Os doutrinadores de teatro rejubilaram. Mesmo os mais lúcidos, como o grande crítico português de teatro Eduardo Scarlatti, reivindicaram uma vez mais a primazia do palco, chamando a esse cinema «teatro mecanizado». Scarlatti afirmou mesmo: «o cinema não é mais que a satis­fação do espírito sem necessidade de cultura. É a sucessão de imagens pelo mecanismo eléc­trico, em vez de mecanismo intelectual».
Serenada a avalanche (e esquecendo propositadamente a boa influência que teve o choque da «improvisação» do neo-realismo italiano com o demasiado «tecnicismo de estúdio» de Hollywood) surgiu um outro cinema sonoro digno de ser observado e meditado, que veio tornar oportuno, uma vez que nos passou a dar belos filmes magnífica (embora imensamente) dialogados, que se reveja o problema de termos estado, ou não, errados quando buscávamos nos valores plásticos das imagens em movimento e no ritmo do seu alternamento a razão de ser da arte do cinema.
Quando surgiram os fonofilmes, foi René Clair, creio, quem melhor pôs o problema — o cinema não deveria servir os diálogos, portanto o teatro, mas utilizar a dicção, a música, os ruídos para sublinhar, para completar a linguagem do cinema «como cinema». Eisenstein surgiu com o «contraponto» sonoro, como complemento alusivo e não sincrónico. Mas, depois disso, muita água correu sob as pontes do Sena. Apareceu por automática decantação, foi amadure­cendo a actual «terceira via», em que o diálogo é persistente e brilhante, mas o jogo de movimentos da câmara, o alternamento de planos, a mutação de lugares, o ritmo de imagens, são, no entanto, perfeitamente cinematográficos. Lembro-lhes, entre outros, a «Eva» (All about Eva), de Mackienvicz, o «Hamlet», de Laurence Olivier, e as «Noites Brancas», de Visconti.
Não só esses, mas muitos outros trouxeram dignidade ao sistema. Serão obras híbridas, plenas de cenas dialogadas, mas (aqui é que está a singularidade dessa dignificação) também o cinema está intimamente presente em tudo aquilo. Te­mos que confessar que isso tem a sua beleza, atingindo /página 4/ notável nível Intelectual, e que é, sem dúvida, boa arte, venha donde vier.
Vejamos. Esses filmes são realmente bons exactamente quando transcendem «o tea­tro em conserva». Os diálogos estão lá e, se são espirituosos ou emotivos, se têm eleva­ção, eles correspondem à sua missão de ser­vir o cinema. É claro que não falo nos filmes que são mau cinema e mau teatro. Mas, se analisarmos essas boas películas sonoras, veremos que elas não contêm os tais diálogos de teatro. Mesmo no caso, muito especial, de Shakespeare (e isso levan­tou escândalo) tiveram os maravilhosos diá­logos de ser «aparados à tesoura». Se fizéssemos a experiência de levar, por exemplo, integralmente as falas da película «Eva» (que julgo poder apontar significativa do prestígio do género) para serem ditas num palco, como se fossem uma peça teatral, verificaríamos que se tornavam absolutamente deficientes. É que o cinema, mesmo nesses filmes, anda por tudo aquilo como um diabinho solto, olhando de frente, de lado, por detrás, fo­cando de cima, saltando de rosto para rosto, perseguindo as personagens nas suas andan­ças, enquadrando sucessivamente as situa­ções e narrando-as com o milagre criado do seu ritmo — o ritmo do cinema, que é onde está a genialidade peculiar da sua arte.
O facto do cinema ter passado a conter diálogos, mesmo quando belos diálogos, só­brios, talentosos, não modificou a sua essên­cia divergente da do teatro. Decerto ambos são espectáculo, ambos utilizam hoje a pala­vra dita, ambos se destinam a ser vistos por uma plateia. Mais, em ambos é primordial a encenação. Isso os Identifica? Não. Não é só nos diálogos, é exactamente no acto de encenar que eles se opõem.
É simplificar absurdamente o problema supor que a diferença fundamental entre as duas artes está apenas em ter, ou não, diá­logos. O cinema não é apenas um hábil aglutinador de todas as outras artes, plásti­cas e ficcionistas. Ele tem profundas carac­terísticas peculiares, uma filosofia de arte própria. É claro que o cinema não está apenas no encanto das imagens, enquadra­mentos, ângulos, «travelings», etc. que, tendo beleza em si próprios, constituem antes a sua técnica, pois a sua estética está em ser­vir-se oportunamente desses elementos como um meio alusivo, todo feito de subtileza e intenções. Com isso se atinge em cinema uma linguagem, um estilo, tão dúctil e sub­jectivo como o duma bela prosa ao serviço do romancista.
Em todos os tempos, desde Platão, se tem perguntado o que é Arte. Há quase 60 anos que se vem perguntando o que é cine­ma. Uma verdade me parece evidente, tão clara e elementar como as puras e excessi­vas verdades que celebrizaram Mr. de la Pa­lisse: — as noções de estética são evolutivas, não saberemos dizer, em absoluto, o que é, ou não é, cinema. Mas nós, que o vimos nascer no nosso tempo e tornar-se grande, podemos garantir que é, quando feito com dignidade, uma arte magnífica e, mesmo quando sonoro e dialogado, não é teatro.
Roberto Nobre

Pale et blonde dort sous l`eau profonde... Para as ofélias

Sir John Everett Millais. Ophelia. 1851-1852. Oil on canvas. Tate Gallery, London, UK

Lembrando A Selva de Ferreira de Castro

PÓRTICO
(De A Selva)
(Em uso nas edições posteriores a 1955, data da
Edição Comemorativa dos 25 anos do romance)
Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática, que é a selva amazónica, pelo muito que nela sofri durante os primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida.
E devia-o, sobretudo, aos anónimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmãos, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extracção da borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência. Devia-lhes este livro, que constitui um pequeno capítulo da obra que há-de registar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos, em busca de pão e de justiça.
A luta de cearenses e maranhenses nas florestas da Amazónia é uma epopeia de que não ajuíza quem, no resto do Mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha -- da borracha que esses homens, humildemente heróicos, tiram à selva misteriosa e implacável.
FERREIRA DE CASTRO

A opinião de João Miguel Tavares, que subscrevo na íntegra

DN, 19 de Agosto

Livros, Bárbara e o pobre Eugénio

João Miguel Tavares jmtavares@dn.pt

Há coisas que irritam. Gente que fura as filas, que corta as unhas em público, que pára o carro no meio da estrada. Mas nada é tão irritante quanto Bárbara Guimarães a declamar Eugénio de Andrade na promoção do seu programa da SIC Notícias, Páginas Soltas. Aqueles 20 segundos de televisão são a maior piroseira cultural alguma vez vista em Portugal, pelo menos desde os tempos em que Manuel Alegre gravava discos de poesia com voz épica e cavernosa.E eu, que vejo a SIC Notícias por dever profissional todas as manhãs, estou constantemente a esbarrar naquele "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele", tantas vezes repetido que acabou por tomar conta da minha cabeça. Estou no duche e, de repente, "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele". Estou a comer os cereais e, à primeira mastigadela, "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele". Estou a mudar a fralda ao Tomás e, ao segundo dodot, "Os livros. A sua cálida, terna, serena pele". É um vírus. É um vírus do pior que há.O meu problema não é só aquilo ser muito foleiro. É que a promoção a Páginas Soltas condensa tudo o que odeio no meio cultural português: a artificialidade impante, a relação reverencial com a arte, o livro como objecto sagrado. Bárbara Guimarães, com os lábios inchados de paixão, recita Eugénio de Andrade como se o "Livro" fosse a nova sarça ardente. O seu olhar nunca fixa a câmara - ou seja, nunca nos fixa a nós, pobres terrestres -, porque naquele momento ela está em transe, em plena epifania livresca, tomada pela inspiração do "Poeta". Aaargh!, preciso de uma água das pedras.Mas Bárbara, reparem bem, não se limita a declamar Eugénio de Andrade com ar afectado enquanto caminha por uma biblioteca a meia-luz. Isso seria coisa de amador. A certa altura, ela vira-se, encosta-se às prateleiras e roça levemente o corpo pelas estantes. É pena as badanas não saberem assobiar, porque aquela é uma manifestação única de erotismo literário: "Possuam-me, livros, possuam-me!" Tanta cultura. Tanta sensibilidade. Tanta devoção. Tanta falta de gosto.

Uma grande verdade a propósito da crítica e dos críticos em Portugal (diria também, a propósito de quase tudo...)

«Julgo que o conflito de gerações não resulta em Portugal porque é uma sociedade muito pequena; o que funciona para a mudança social é um regime de cooptação, isto é, uma pessoa apanha pancada, é ignorada, é gozada, não tem emprego, não tem dinheiro, não tem nada, e se se aguenta durante dez ou vinte anos, ao fim desse tempo passa a ser do meio.»

Carlos Leone, em entrevista ao DN (18 de Agosto)

Quem se eterniza sempre aparece