sexta-feira, abril 21, 2006

REVISTA ATLÂNTIDA Vol. L 2005


REVISTA ATLÂNTIDA Vol. L 2005

SUMÁRIO

ESTUDOS E CRIAÇÃO ARTÍSTICA


11 Ilhas: Cidades, Arquitecturas, Patrimónios (colectânea de 12 textos sobre as ilhas: Açores / Madeira / Canárias – 1998-2004)José Manuel Fernandes

53 Modernidade chocante,sistemas neurasténicos e corpos aborrecidosVerónica Metello

65 A mediologia e a situação pósmoderna da músicaJorge Lima Barreto

69 Arte, sagrado e felicidade António Neves Leal


ESTUDOS E CRIAÇÃO LITERÁRIA

81 Pâle et blonde. Dort sous l’eau profonde.Uma
aproximação entre Maria Eduarda e Margarida Clark Dulmo
Liliana T. Dias Carvalho


91 O mundo infectado de alma. Uma leitura de “Hora Absurda”, de Fernando Pessoa
Alexandre Borges

103 Dueto a uma só voz (A Valesca de Assis, versão gaúcha de Zélia Gattai. Luiz António de Assis Brasil é o seu Jorge Amado)
Daniel de Sá

109 Gelo incandescente
Manuel Machado

113 Poesia
Pedro Mendes Alves

117 Poesia
Natércia Fraga

121 O Lisboês
Joaquim Evónio

125 A Emanuel Félixe a Manuel AntónioDias de Melo

133 Corsos de Memórias – o Corso que Vitorino Nemésio não fez(a António Machado Pires)
Lélia Pereira da Silva Nunes


CIÊNCIAS HUMANAS

139 Quatro povoadores açorianos. Muitas perguntas e poucas respostas
Segismundo PintoManuel Lamas de Mendonça

181 A fundação dos espaços conventuais na Ilha de São Miguel nos séculos XV a XVIII
Carla Cristina da Cruz Patrício

203 José de Sousa Nunes. O Homem, a Família e a Distribuição de Bens (1737-1795)
Lúcia de Lurdes Oliveira Tavares Santos

223 Subsídios para a História da Moeda Insulana e das crises monetárias nos Açores durante a segunda metade do século XIX
Paulo Silveira e Sousa

237 Notas sobre um contrato de empreitada no Topo há cem anos
José Mendonça Brasil e Ávila

245 Las fiestas y los bailes entre los mambises cubanos 1868-1898
Ismael Sarmiento Ramírez

259 Os portugueses no folclore goês
Teotónio R. de Souza

269Da condição actual do Ocidente a um primeiro diagnóstico
Miguel Soares de Albergaria


OUTROS SABERES

279 As áreas ambientais nos Açores: breve historial
Eduardo Carqueijeiro

281 Biodiversidade terrestre dos Açores
Paulo A. V. BorgesRegina CunhaRosalina GabrielAntónio Frias MartinsLuís SilvaVirgílio Vieira

291 Tempestades no Saara e poeiras no Atlântico
António Félix Flores Rodrigues

297 Espaço e Tempo: primórdios da relatividade de A. EinsteinRamiro Délio Borges de Menese

Memórias de paisagens...




quinta-feira, abril 20, 2006

Fronteiras...









«Fronteira


De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente, doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.


O mesmo beijo aqui, o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcateia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.


Mas uma força que não tem razão,
Que nãao tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.»


Miguel Torga. Libertação (1944)



«Olhamos a face dos perecidos homens que nos deixaram o anseio de todas as viagens, nos territórios agora abandonados. Subimos aos cumes e contemplamos a terra, a superfície visível do sonho de todas as viagens nunca feitas. Quando nos começamos a libertar do medo e não tememos o abismo, a morte fica para trás, damos o passo em frente no vazio inaugural de um espaço/tempo diferente. A nossa alma derrama-se por todos os lugares e o nosso corpo já é só esquecimento. Sonhamos a possibilidade de não haver regresso. E não há regresso. Ao voltarmos todas as paisagens são diferentes. São os passos contínuos em redor do mundo, como que passos na cercania das próprias viagens.»



Duarte Belo. O Vento Sobre a Terra (apontamentos de viagens). Ed. Assírio e Alvim




La Cécité du Dessinateur - O Desenho entre a História da Arte e a Arte Digital


«O ter lugar das coisas não tem lugar no mundo.
A utopia é a própria topicidade das coisas.»
Giorgio Agamben



Quando tentamos definir Desenho, pensamos na representação gráfica de uma ideia, sendo desenhar o acto de tornar visível um pensamento, independentemente dos meios utilizados. Implica uma relação com a mão e o suporte onde se desenha. Mobiliza o corpo do sujeito, numa relação da mão com o cérebro, resultando assim o desenho (enquanto produto final) de movimentos de um corpo. No desenho tradicional, o resultado da acção do artista torna-se visível pela sua materialidade. Na era do digital, o desenho assistido pelas novas tecnologias é-nos revelado pela sua imaterialidade.

As novas práticas do desenho estão associadas também a novas percepções da realidade. As tecnologias necessitam de um corpo como interface para que haja interactividade entre o mundo real e o mundo fantasma. Não há simulacro sem haver a construção de um mundo, de um universo – o simulacro não pode existir apenas no mundo da representação. Por via da utilização das tecnologias, a relação processual do desenho sofre alterações. O computador, através de programas
[1] onde se encontram réplicas de objectos do mundo real (lápis, borracha, tintas) permite que se crie uma interactividade entre o mundo real e o mundo fantasma – numa palavra, simula-se um real perceptivo, através do qual a imagem aparece ligada à criação artística. O conceito de autoria da obra de arte é aqui problemático, uma vez que o computador executa os comandos que o desenhador tipifica, mas estes comandos são decifrados pela máquina através de uma linguagem não perceptível ao homem – artificial. O homem enquanto ser digital[2] passa a interagir através dos meios multimédia, com imagens digitais, que representam um processo revolucionário de reprodução, manipulação e apuramento da imagem ou de elementos dessa imagem.

Coloca-se hoje a questão de como viver através dos interfaces numa realidade que, vivendo dos objectos, do design, se pode designar pela sua não-objectualidade, numa Era que já foi apelidada como sendo a do Design Total
[3].

Para Arthur Danto
[4] a arte Pop e, sobretudo Andy Warhol marcam o fim da arte — o fim de um tipo de arte que é compreendido pela história da arte, que agrupa estilos, relaciona movimentos, explica obras particulares e, sobretudo, parece mostrar uma linha quase contínua de evolução e progresso artístico. Já Yves Michaud, em L`Art à L`État Gazeux, afirma que não chegámos ao fim da arte: simplesmente equacionamos o final da idade “objectual” da arte. Deixou de haver a necessidade de objectos artísticos. As obras desapareceram pelo excesso da sua produção[5]. Torna-se curioso analisar esta afirmação à luz da prática do desenho, uma vez que a sua prática tem ocorrido quer na forma “analógica “, quer na forma digital, ou seja na sua forma material e imaterial.

Jonathan Crary, no seu livro Suspensions of Perception
[6], procura explicar como é que a Modernidade Ocidental, desde o século XIX, fez com que os indivíduos se definissem em torno daquilo a que prestam atenção (pelos sentidos). Para Crary, o que se nota na sociedade ocidental do final do século XX é justamente uma “deficiência da atenção”, que talvez se explique pela ideia que o autor receber de Walter Benjamin – recebermos tudo em estado de distracção. O livro de Crary resulta então da tentativa de criar uma genealogia da atenção, que o autor baliza no século XIX, mais concretamente na segunda metade de Oitocentos (onde se define uma crise da percepção), e a partir dessa genealogia, determinar o seu papel na subjectividade contemporânea. Crary argumentará que a cultura do espectáculo não encontra o seu fundamento na necessidade de fazer um sujeito “ver”, mas cimenta-se em estratégias nas quais os indivíduos estão isolados, separados «and inhabit time as disenpowered.»[7]
A percepção torna-se, para a época contemporânea, um termo problemático: o século XIX quis restaurar a noção latina de “tornar cativo”, mesmo quando era evidente a impossibilidade de fixar e possuir determinado objecto. O que é importante para o poder institucional, desde os finais do século XIX, é assegurar que a função perceptiva garante um sujeito que é produtivo e capaz de socializar, integrando-se e adaptando-se a um grupo.
A atenção foi inevitavelmente o ingrediente de uma concepção subjectiva da visão, quer ao nível da produção, quer ao nível da recepção das obras de arte. Os escritos de Walter Benjamin sobre a perda da aura da obra de arte — a passagem do seu valor cultural tradicional (de culto) ao valor de exposição
[8], permitem-nos identificar o triângulo existente desde sempre entre o artista, a obra e o público. Procurar o «efeito específico da arte»[9] é, desde a Poética de Aristóteles, perseguir o prazer que provém do terror e piedade, através da imitação verosímil das acções dos homens, e o que deriva da estrutura perfeita do mito como ser vivente[10], ou seja da história como um todo que se actualiza pelo efeito, catártico ou não, produzido, pela leitura, no leitor/espectador. Ao trazer Aristóteles à colação, verificamos que na era do digital, e nas novas formas de construção do desenho, não é possível falar em organons, porque não é, muitas vezes possível percepcionar os objectos como um todo, ou sequer como soma das partes. Também o carácter mimético da obra de arte é deslocado do seu “objecto” para os meios da sua produção – o lápis, a borracha, o pincel, as tintas, a caneta.
No desenho digital, podemos sobrepor todos os elementos lá colocados, a partir de movimentos quase instantâneos. Daí que a expressão de José Jimenez «tornámo-nos pobres»
[11] ganhe aqui, aplicada a esta prática artística, um sentido muito particular. Como diz Jimenez, «tornámo-nos pobres porque na cultura contemporânea tudo se sobrepõe: linguagens, tempos, espaços. Na era das comunicações de massa a palavra (narrativa, poética, filosófica…) pode fazer-se valer tão-só nos interstícios do ruído, através da acumulação redundante e vazia, nos espaços confinados onde a situa a banalidade discursiva dominante, puramente serial, repetitiva. Que nivela e iguala qualquer tipo de expressão, independentemente dos seus sentidos e intencionalidade.»[12]

Para Yves Michaud, durante o século XX artístico, todo o movimento e toda a inovação que se presta à etiqueta de um –ismo chega ao nouveau-realisme e ao minimalismo dos anos 50 e 60 onde se desenvolve a arte da performance, a arte corporal, a arte da atitude, a arte conceptual, a arte da linguagem, a arte do objecto específico que não é nem pintura nem escultura dentro do minimalismo
[13]. Tanto a Pop como o Minimalismo interrogam o problema da recepção do objecto artístico. O livro de Michaud explica-se através de um paradoxo: se a beleza e, concomitantemente o triunfo da estética se cultivam, se difundem, se consomem e se celebram num mundo que vive de obras de arte, como é que tudo se evapora e se torna “gasoso”?
Em «A Humanidade em Tempos Sombrios: Pensamento sobre Lessing», Hannah Arendt escreve: «Nada no nosso tempo é mais duvidoso, penso eu, do que a nossa atitude para com o mundo, nada menos garantido do que o acordo, que uma distinção nos impõe e que a sua existência afirma, com aquilo que se manifesta em público. No nosso século até mesmo o génio só se conseguiu desenvolver em conflito com o mundo e o domínio público, embora naturalmente encontre, como sempre fez, a sua forma própria de acordo com o seu público. Mas o mundo não é a mesma coisa que as pessoas que o habitam. O mundo está entre as pessoas, e este espaço-entre é hoje — muito mais do que os homens, ou mesmo o homem, ao contrário do que muitas vezes se pensa — o objecto de maiores preocupações e o domínio das convulsões mais evidentes em quase todos os países do globo. Mesmo onde o mundo ainda se encontra numa relativa ordem, o domínio público perdeu a capacidade de iluminação que originalmente fazia parte da sua natureza própria.»
[14].
A citação é talvez demasiado longa, mas necessária para entender o que da estruturação do pensamento de Arendt podemos convocar para o nosso trabalho. Escrito em 1959 e publicado pela primeira vez em 1960, trazendo Lessing para a contemporaneidade, a questão que importa à autora é «a de saber até que ponto devemos agarrar-nos à realidade, mesmo num mundo tornado inumano, para que a humanidade não se reduza a uma palavra oca ou a um fantasma»
[15]. Não nos iremos deter nas emigrações interiores de que fala Arendt: lendo o texto no contexto epocal, interessam-nos aqui expressões como «espaço-entre», «agarrar-nos à realidade» e «fantasma». A autora, a propósito de Lessing, fala acerca das tentativas de criação de mundos alheios à realidade como forma de escape à compreensão do mundo, sendo que, sempre que Arendt diz mundo, é legítimo substituir esta palavra por sociedade. Justificando a posição de Lessing como contrária a esta atitude (a de alheamento do mundo exterior), a autora afirma que o filósofo, tendo embora sido um incompreendido no seu tempo, não se evadiu, dado que acreditava na sustentação do pensamento em diálogo com o mundo: não eram as coisas em si que interessavam a Lessing, mas sim a relação que os conceitos/objectos estabeleciam com o público, dialogando com ele — e é nesta atenção à recepção das coisas pelo público que Lessing pode ser trazido para o nosso tempo.
De que modo é que podemos convocar o pensamento de Arendt para um trabalho que pretende reflectir as relações entre o desenho “analógico” e o desenho digital? Antes de mais o desenho é uma imagem. O digital remete-nos de imediato para uma linguagem codificada, o que suspende o imperativo da matéria, ou da materialização. A partir do digital, o desenho ganha uma nova fisicalidade – o monitor do computador é o espaço visual do ambiente de trabalho, mas também funciona como o suporte do desenho. Por isso, é o outro olho do desenhador, aquele onde talvez se descobrirá um palimpsesto virtual que devolva aos desenhos digitais a memória que hoje não têm, por não ser possível, quando se termina o desenho, identificar onde residem as alterações que o desenhador foi indicando.
O desenho tradicional só existe enquanto matéria – os enganos e alterações que possamos verificar têm a mesma durabilidade do suporte que sustenta o desenho – normalmente, o papel.

Talvez seja possível estabelecer ligações entre a topicidade do desenho tradicional e a u-topia do desenho digital. Se a utopia se caracteriza por ser um anti-espaço, por recusar o lugar em proveito do protótipo, a identidade do desenho que aparece nas artes digitais, reflecte as interrogações que, na cultura contemporânea se colocam em torno da percepção do espaço. Se o desenho digital não se tipifica, a priori, por uma limitação espacial que no tradicional se encontra, simplesmente, pelo tamanho de uma folha, podemos enquadrar o digital numa estética da desaparição, do desvanecimento, uma vez que as imagens se caracterizam pela sua fugacidade, pela memória da máquina da visão, ou melhor, da persistência de uma imagem na retina
[16].
[1] Nomeadamente o Paint e o Corel Draw.
[2] Cf. Nicholas NEGROPONTE. Being Digital, Alfred A. Knopf, New York, 1992.
[3] Expressão utilizada por Maria Teresa Cruz, no seu texto, «O Artificial ou A cultura do design total», em www.interact.com.pt
[4] Cf. Arthur C. DANTO. After The End of Art, Contemporary Art and The Pale of History. Princeton, Princeton University Press, 1997
[5] Cf. Yves MICHAUD. L`Art à L` État Gazeux, Essai sur le triomphe de l`esthétique. Paris, Ed. Stock, 2003
[6] Cf. Jonathan CRARY. Suspensions of Perception – Attention, Spectacle and Modern Culture. Cambridge, Massachusetts: M.I.T. Press, 2ª Ed., 2000
[7] Idem, P. 3
[8] Cf. Walter BENJAMIN, «A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica» In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Ed. Relógio d` Água, s. Ed., 1992
[9] Cf. Aristóteles. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Lisboa: IN-CM, 4ª ed., 1994, p. 148. As referências a esta obra terão como base esta edição
[10] «Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto um organismo vivente pequeníssimo não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria belo, grandíssimo (porque faltaria a visão do conjunto, escapando à vista dos espectadores a unidade e a totalidade; [...] Tal como os corpos e organismos viventes devem possuir uma grandeza, e esta bem perceptível como um todo, assim também os mitos devem ter uma extensão bem apreensível pela memória.» In Op. Cit., pp. 113-114
[11] JIMÉNEZ, José. A Vida Como Acaso. Complexidade do Moderno,. Lisboa : Ed. Vega, 1ª Ed., 1997, p. 9
[12] Idem, p. 12 (O sublinhado é nosso)
[13] Cf. Yves MICHAUD. L`Art à L` État Gazeux, Essai sur le triomphe de l`esthétique. Paris, Ed. Stock, 2003
[14] Cf. Hannah ARENDT. «A Humanidade em Tempos Sombrios: Pensamentos sobre Lessing» in Homens em Tempos Sombrios. Lisboa: Ed. Relógio d`Água, 1991, pp. 12-13 (Os sublinhados são nossos)
[15] In A. Arendt, Op. Cit., p. 33
[16]
Cf. Paul VIRILIO. La Machine de Vision , Colection L’ Espace Critique, dirigé par Paul Virilio, Paris, Éditions Galilée, 1988, pp : 125-126.



Liliana Dias Carvalho

O Naturalismo em Portugal

Depois da reflexão seiscentista de Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda (pelo afastamento da corte urbana e posterior refúgio no campo, onde re-escreveu, em contacto com a natureza, os seus poemas) e Rodrigues Lobo, que fizeram, já no século XVI, a apologia do retorno ao campo e ao culto dos seus valores, o olhar sobre a paisagem foi sendo arredado da produção artística nacional. É já no século XIX, em pleno Romantismo, que a tradução do interesse sobre a paisagem, nascido da síntese entre o olhar científico e a percepção sensível do mundo natural, se traduz numa leve revolta antiacadémica de Tomás Anunciação (1818-1879), em 1844, contra a inexistência de uma cadeira de Paisagem, com pintura en plein air, numa anacrónica Academia de Belas-Artes de Lisboa.
Das várias propostas picturais que podemos enunciar como pinturas do Romantismo português, destacamos Cinco Artistas em Sintra (1855), de João Cristino da Silva (1829-1877) por nesta tela encontrarmos as possibilidades, a história e os limites da pintura do romantismo português. Julgamos sensato aplicar ao Romantismo na pintura em Portugal, a mesma máxima com que Garrett se definiu como autor no poema Camões (publicado em Paris em 1825, na época em que Garrett se encontrava exilado), que consagra este movimento literário português desde logo, como paradoxal: Se quando falamos de romantismo(s) temos presente a ideia dinâmica de transformação de documentos históricos em monumentos artísticos, urge questionar o porquê de o nosso romantismo não se iniciar, em primeiro lugar com o género primordial da época — o Romance —, em segundo, porque é que Almeida Garrett e Alexandre Herculano recusam a responsabilidade de se afirmarem como românticos e, em terceiro, a razão pela qual o carácter do trágico (em literatura e nos outros domínios artísticos) não tem expressão no nosso Romantismo. Neste seguimento, a pintura do Romantismo português não é (enquanto totalidade) nem clássica, nem romântica... É, sobretudo, cenário. Podemos entender a tela de Cristino como uma alegoria à necessidade de olhar e pintar a paisagem sur le motif. O quadro tinha como destino a participação na Exposição Universal de Paris (que aconteceu em 1855), podendo ser encarado como um manifesto: juntar cinco artistas em torno de um ideal de pintura é indicar um caminho a seguir. Todo o quadro se estrutura em torno de uma figura central — Anunciação —, pintada no acto de pintar. O local é geograficamente e pitorescamente reconhecido — Sintra —, vendo-se ao longe o Palácio da Pena, obra contemporânea dos artistas que se retratam no quadro: Por detrás de Anunciação está Metrass e, mais longe, à direita, Victor Bastos, José Rodrigues e o próprio pintor, Cristino e todos olham na direcção do artista que está a pintar. No quadro são também retratados os saloios característicos da região sintrense (olhando para a tela que Anunciação pinta). Síntese de uma pintura de paisagem e de costumes, que em Portugal colheu melhores frutos, se a compararmos com a pintura de paisagem, pela atenção que Cristino dá ao pitoresco pelo traje e expressão dos saloios, notamos que a importância que a paisagem tem neste quadro é subsidiária da dos artistas. O local (Sintra) aparece mais como cenário do que como pintura en plein air. A fraga que serve de pano de fundo a Anunciação é sobretudo cenográfica e a própria rigidez, quer da natureza, quer dos retratados, devolve-nos uma pintura demasiado acabada em atelier, muito contrária aos modelos da pintura moderna europeia.
A revolução possível, iniciada por Anunciação, deve-se ao pouco conhecimento que existia em Portugal sobre a produção artística estrangeira (nomeadamente das escolas inglesa, francesa e alemã). Enquanto que, na literatura (e também na música), as edições corriam por vários países, chegando a Portugal, normalmente, traduções francesas da produção literária Oitocentista, na pintura, o imperativo das deslocações ao estrangeiro para observação das técnicas dos métodos utilizados fez com que, num país em que os artistas pouco conheciam da sua própria paisagem e onde as oportunidades de viajar e estudar no estrangeiro era quase inexistentes, permanecêssemos entre o culto do natural e a arte da paisagem...
O cerne desta questão está na relação que os artistas têm com a memória nacional. Não é demais voltar ao Camões de Garrett e lembrar que este poema tem como leit-motiv a relação (autobiográfica) que o poeta (o narrador — Garrett —, e o narrado — Luis de Camões) tem com a pátria. Da leitura do poema, que já não é épico, fica a ideia de que toda a relação com a poesia (nacional) se afasta da relação do poeta com a memória. A poesia deixa de ter fundamento histórico porque a pátria não dá sentido à poesia nem à memória do poeta. E a figura de Camões enquanto artista incompreendido pelo seu país e seus contemporâneos gera, na pintura, uma das iconografias mais produtivas no Portugal de Oitocentos. O nacionalismo literário exaltado pelos românticos é o que afasta Garrett de Camões e é também o que cria uma atrofia do artista com a sua memória. Não existindo um passado cultural apoiado em quadros mentais estruturados, o nosso romantismo não poderia propor, em vários planos, uma procura coerente com as tradições que a Idade Média nos tinha legado, pois esta memória estava inserida numa enorme floresta de alheamentos, estruturada por hiatos. Sequeira, Garrett, Metrass, Victor Bastos, Soares dos Reis e mais tarde, como adiante veremos, Columbano, retomam continuamente o tema Camões, unidos na atitude de personalizar, na figura romântica do poeta, o desejo e a necessidade de renovação da cultura nacional e a angústia secular motivada pelo sentimento de negação, de desterro de que se sentiam vítimas num país que no passado como no presente, os condenava a Jaus. Se muitos estudos da cultura portuguesa (Eduardo Lourenço e António José Saraiva são bons exemplos) do século XX enfatizaram a imagem de Camões como imagem-símbolo de uma pátria, de uma Mensagem, no século XIX Camões não é só uma imagem, é também um lugar e uma atitude — numa palavra, uma paisagem.
Com efeito, filósofos da Enciclopédia como Diderot e Voltaire eram leitura proibida no Portugal de finais de Setecentos e inícios de Oitocentos e a crítica de arte que então se produzia no país não era, de todo, relevante. Não será demais lembrar que, ainda em 1843, Almeida Garrett (Viagens na Minha Terra) alerta para a necessidade de se viajar pelo país, pois essa era a única forma de o conhecer. Ora, um país que não se conhece, e cujos artistas não viajam, não pode conhecer-se e, nessa medida, não pode produzir um discurso crítico sobre a sua produção artística (não dialoga com a sua memória). Tendo já sido publicado o Diário de W. Beckford (1838), obra que primeiramente guiou o olhar estrangeiro pelo nosso país, Garrett, em pleno Romantismo, sente a necessidade de apelar ao besoin de voyager como forma de conhecimento da nossa cultura e da nossa paisagem. Para discutir a existência e características do Naturalismo em Portugal, ou português, o volte-face com o nosso tempo é imperativo, pois é a partir deste nosso tempo que podemos avaliar, com seriedade e sem os pessimismos catastrofistas que costumam estar associados ao estudo da expressão artística Oitocentista, a consciência que os artistas contemporâneos de um Anunciação ou de um Metrass tinham da sua contemporaneidade.

Na primeira metade do século XIX português, a produção de um discurso sobre a arte foi realizada sob um cenário profundamente híbrido que raramente conciliou formação científica com consciência crítica. Data de 1836 a criação da Academia de Belas Artes em Lisboa e da Academia Portuense de Belas Artes, sem que existisse legislação orientada para o ensino, quer geral, quer artístico. O conde Athanasius Raczynski (1788-1874), correspondente da Sociedade Artística e Científica de Berlim, chegou a Portugal em 1842, no mesmo ano que o conde de Lichnowski. Aqui permaneceu três anos como ministro da corte da Prússia, tendo estudado durante este tempo a arte portuguesa, reflexão que se consubstanciou no seu livro editado em 1846, Les Arts en Portugal. A sua obra constitui o primeiro marco de história e crítica de arte escrito em Portugal, inaugurando assim uma linha de historiografia que só viria a ter descendência com Joaquim de Vasconcelos (1849-1936), considerado o pai da historiografia de arte em Portugal. Justamente estes dois autores, que combinaram formação científica com consciência crítica, tendo por isso o olho clínico necessário para ver para os objectos civilizacionais como factos artísticos, foram exorcizados pela crítica reinante em Portugal, fazendo com que não se compreendesse os vários léxicos que começavam a tomar forma em Portugal. Para se compreender, a título de exemplo, o eclectismo que começava a dominar a arquitectura da segunda metade do século XIX era necessário reivindicar uma memória cultural e artística (nacional e estrangeira) a que a crítica estava, de todo, alheada. Será necessário esperar por Ramalho Ortigão e pelo ferrão de Fialho de Almeida para desentorpecer a crítica de arte portuguesa. À distância de mais de um século O Culto da Arte em Portugal, viagem de Ramalho Ortigão, que já em 1896 vinga por ser um dos poucos documentos críticos escritos por um português que relatam o estado do nosso património e paisagem, surpreende-nos, nos inícios do século XXI, pela sua actualidade — como se permanecêssemos nos “fins do Romantismo” (ou na impossibilidade de dialogarmos com o nosso passado) anunciados criticamente desde o último quartel do século XIX. Para compreender o texto de Ramalho é necessário convocar um ideário que a Geração Romântica (Garrett e Herculano) e depois a Geração de 70 (com Eça de Queirós, Antero de Quental, Jaime Batalha Reis e o próprio Ramalho Ortigão, que começou por se aproximar de Castilho) construíram. O romantismo português (e, latu sensu, o século XIX) desenvolve-se entre a procura de uma identidade através da inventariação de uma memória que não se consegue agarrar e a tentativa de desenvolvimento de estruturas contemporâneas que possibilitem um novo olhar para o país. É a partir da recherche da identidade que o Romantismo se volta para o nascer da nacionalidade e para os edifícios (que deste modo se transformam em monumentos) — porque as pedras também falam (mas é necessário compreender a sua linguagem) —, advindo daí a consciência do imperativo da sua protecção. Se é pela arte que o homem se entende como pertencente a um tempo e a um lugar, a cultura artística nacional é, para Ramalho, tributária da arte nacional (e local). Se nos lembrarmos da crítica acérrima realizada pelo autor aos estrangeirismos na nossa arquitectura de finais de Oitocentos e inícios de Novecentos (os ex-libris de arquitectos e encomendadores nas Avenidas Novas e nos “Estoris”), compreendemos melhor o seu pensamento. Na arquitectura, a adaptação do gótico a um estilo mais caracteristicamente português (o manuelino, que também é uma designação do Romantismo) é encarada como originalidade artística, por ser o resultado de uma reflexão sobre a paisagem. Produzindo uma crítica que em relação à arquitectura do seu tempo é deveras arrasadora, Ramalho mostrará uma faceta completamente antagónica ao revelar-se o crítico do Naturalismo português, tomando Ruskin como exemplo mas sentindo na pele as impossibilidades de um apelo sincero à proximidade do campo, por simplesmente não existir, no Portugal de Oitocentos, a nítida dicotomia cidade/campo. Onde estava a nossa indústria?....

Se definimos as possibilidades do Romantismo português a partir de Cinco Artistas em Sintra (Cristino da Silva, 1855), o Grupo do Leão (Columbano Bordalo Pinheiro, 1885) devolve-nos as várias facetas que o naturalismo revelou na pintura. O primeiro paralelo a estabelecer entre os dois quadros (FRANÇA, 1987) centra-se no elogio do grupo e no reconhecimento de um mestre congregador de determinados ideais. Se em 1855 era Anunciação, em 1885 o mestre é o seu directo sucessor na Academia: António Carvalho de Silva Porto (1850-1893). Á margem dos grupos, e no limiar entre o Romantismo e o Naturalismo, encontramos Alfredo Keil (1850-1907) artista que, como Almada Negreiros e António Pedro no século XX, trabalhou afincadamente várias linguagens artísticas. Músico — a ele devemos o nosso Hino, escrito na tumultuada época pós-ultimatum, ainda monárquica — poeta, pintor, fotógrafo e museólogo. Cumpre aqui destacar o pintor, um dos poucos portugueses onde se nota a evasão na natureza, pela quase ausência de figura humana nos quadros. Contemporâneo da primeira geração naturalista, Alfredo Keil dela de manteve isolado e deve ser notado como ausência na galeria de retratos que Columbano pinta em 1885. Sem a intencionalidade programática do «divino mestre», Keil não cede à fatalidade da narrativa na pintura portuguesa.

Falar da primeira geração naturalista portuguesa é destacar Silva Porto, João Marques da Silva Oliveira (1853-1927) e Henrique César de Araújo Pousão (1859-1884). É com estas três figuras cimeiras que se discutem as possibilidades do Naturalismo português. Silva Porto e Marques de Oliveira são os primeiros pintores portugueses a beneficiar de uma pensão do Estado para aperfeiçoamento de estudos no estrangeiro. Começa por ser intrigante que o primeiro pensionista do estado a estudar paisagem na École de Beaux-Arts tenha sido formado na Academia do Porto (onde não existia essa cadeira), o que desde logo indicia um esforço tremendo de autodidacta. Falamos obviamente de Silva Porto, primeiro pensionista português de estudo de paisagem e que, ao regressar a Portugal em 1879, será convidado para a Academia de Belas-Artes de Lisboa como professor da cadeira de Paisagem, sucedendo a Anunciação, que sucumbira nesse mesmo ano. Silva Porto foi aluno de Yvon e Cabanel e em Paisagem de Beauverie e Groseillez. As frequentes deslocações a Barbizon e a Auvers-sur-Oise permitiram o contacto com Daubigny, que fortemente o influenciaria. Corot, Millet e Courbet também abriram a sua palete de cores. A viagem a Itália, entre 1877-88 terá dado a Silva Porto outra compreensão do sol mediterrâneo. Marques de Oliveira concorreu com Silva Porto, ganhando o pensionato para estudo de Pintura de História. Tendo observado, durante a estadia em França, uma “nova” pintura de ar livre, já completamente instituída pelos pintores de Barbizon nos anos 30/40 do século XIX, Silva Porto e Marques de Oliveira, regressam em 1879 a Portugal (já depois da primeira Exposição dos Impressionistas, no atelier do fotógrafo Nadar) com a boa nova do Naturalismo em pintura. A biografia de Silva Porto a partir de 1879 reduzir-se-á às suas lições de professor (saía com os seus alunos para o campo a pintar, despertando neles o gosto pela pintura sur le motif) e a uma pintura que começou com uma euforia momentânea e terminou pitorescamente. A Condução do Rebanho (1893) pode ser vista como um ícone da pintura final de Silva Porto e, com as devidas ressalvas, de toda a pintura de paisagem portuguesa — se o esplendor da pintura naturalista europeia (inglesa e francesa) é contemporâneo das revoluções industriais (e do consequente abandono do campo), da perda de terreno do campo para a cidade (e por isso pinta-se com a consciência da mutação da paisagem), em Portugal, país sem estradas, com 12% da população a viver nas cidades e uma indústria quase inexistente, que consciência tinham os pintores do efémero da paisagem? 88% do território português estava ligado a este pastor que conduz o rebanho, que se pode distinguir ao longe pela mancha de pó que vai deixando ao passar... E o perpetuar de um ideal de pintura ar-livrista defendido pelos Naturalistas entrou pelo século XX sintetizado no Grupo Silva Porto (1927-1949) numa época em que as discussões sobre o que hoje podemos legitimamente caracterizar como paisagens se situava no interior do Homem e não na pintura como reflexo do que se vê na natureza.
A pintura de paisagem teve em Marques de Oliveira, e apesar deste artista ter ficado limitado à docência da Pintura de História, uma abertura na palete de cores que não encontramos em Silva Porto. Admirando Corot e Boudin, conseguiu um entendimento pictural do motivo bem visível na sua percepção das praias do Norte, que não encontramos em Silva Porto, como se a pintura de paisagem em Portugal estivesse condenada à sobrevivência pelo autodidactismo...
Henrique Pousão termina este ciclo e destaca-se pela singularidade da sua pintura. Se analisarmos um pintor pelos caminhos que este abre na pintura, e pelo entendimento das paisagens que este nos devolve contemporaneamente, é Pousão que, entre 1882 e 1884, ultrapassou o próprio naturalismo, strictu sensu. Sucedendo a Silva Porto como pensionista, teve no entanto de partir para Roma, em busca de um clima mais temperado para a sua tísica. Nos dois anos que permanece em Capri, Pousão abre as suas telas ao sol do Norte de Itália, sendo As Casas Brancas de Capri (1882), Janela das Persianas Azuis (N. Dat.) e Paisagem — Anacapri (1883?) verdadeiros marcos de abertura de um caminho que na pintura portuguesa não foi (e não podia) ser seguido.

É com José Malhoa (1855-1933) e Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929) que se discute, entre o retrato e a pintura de costumes, ou entre a luz e a sombra, o fim do século XIX português e os limites do nosso Naturalismo. Os dois autores definem picturalmente maneiras de ver que nos permitem falar de uma continuidade do século XIX em pleno século XX. Continuando as poéticas do sublime e do pitoresco, podemos dizer que Malhoa está para o pitoresco, assim como Columbano está para o sublime. Para estes artistas, a essência da natureza não se encontra na paisagem da pedra (como em Anunciação ou em Cristino da Silva), mas na paisagem humana. Malhoa não tem, como os paisagistas franceses, o desejo de evasão. Daí a imensidão de paisagens povoadas de gente que formam a sua pintura. Se em Columbano encontramos a solidão e a melancolia nas paisagens dos rostos que pinta, sendo necessário procurar a matriz da sua pintura não nos paisagistas seus contemporâneos, mas em Rembrandt, Velásquez e Goya, com Malhoa dialogamos num tempo suspenso que se estende por quase todo o século XX português, entre um campo e um povo dispersos pelo país, massa anónima que ri e chora, bebe, canta e namora....
Malhoa não estudou fora de Portugal e, durante algum tempo foi um mero pintor de domingos, pela necessidade de conjugar a sua actividade artística com a de comerciante. Talvez por isso nos seus quadros encontremos sempre uma geografia que se situa entre Lisboa e as Caldas da Rainha, sendo que, na distância entre a cidade e o campo não encontramos, através da sua pintura, elementos que distingam claramente os dois universos.
Cócegas (1904), de Malhoa, é justamente uma faceta do namoro camponês, em perfeita harmonia com as forças da terra. Num momento de lazer, dois camponeses descansam e vão aproximando os seus corpos em torno de uma conversa. È o sol (dado pelo intenso amarelo) que convida e exige esta pausa num trabalho regulado por um tempo que ainda é cíclico, e convida à conversa e ao aproximar dos corpos. Em 1904, 1890 ou 1950 (e, arriscamos, em 2003...) é possível encontrar ecos desta imagem (como também de Os Bêbados, 1907 e de A Volta da Romaria, 1901), com algumas alterações, decorrentes do tempo, mas com o mesmo substrato... Por isso a análise da pintura de Malhoa é tão produtiva quando encarada numa perspectiva sociológica (e o século XX bem aproveitou essa produtividade...) o que muitas vezes desleixou uma análise pictural. É no entanto, neste pintor, que encontramos a síntese de uma linha evolutiva que se desenvolve do Romantismo ao Naturalismo: Malhoa aprende de Anunciação o gosto pela paisagem e de Silva Porto o entendimento da pintura en plein air. E na sua pintura cruza-se o animalismo, os costumes e um claro entendimento da paisagem portuguesa (sobretudo do sol português...). O quadro impressionista de Malhoa (Outono, 1919) não tem, sequer na sua pintura, seguimento. E como poderia ter, num século que já tinha vira nascer Orpheu (1915), Amadeu Sousa Cardoso, o Manifesto Anti-Dantas de Almada Negreiros (1916) e o próprio Portugal Futurista (1917), o abstraccionismo lírico de um Kandinsky e a I Guerra Mundial?
Se em Malhoa encontramos uma pintura centrífuga, para entendermos a pintura do Columbano temos de propor uma análise interior (já própria de um entendimento do século XX) que se encontra nos antípodas da de Malhoa.
As paisagens dos rostos foram uma verdadeira obsessão para Columbano. O olhar deste artista é já o de um cinéfilo, que capta o pequeno movimento do rosto e o eterniza...
A Chávena de Chá (1989), é um exemplo através do qual podemos entender este pintor (e talvez por esse motivo Columbano nunca o quis vender). Num claro acordo com a poética de claro-escuro de Rembrandt, o quadro fala-nos de valores intimistas, de um monólogo interior que a personagem retratada, sua mulher, na sua quietude, cria com a chávena de chá, ou com o vapor que dela sai... O movimento da chávena de chá opõe-se à quietude da personagem, como se esta estivesse num tempo de espera... O facto de a mulher retratada não estar virada para o pintor, permanecendo completamente só com os seus pensamentos no recolhimento do lar, afogada na penumbra de uma sala povoada por uma natureza-morta, a chávena e o samovar, recolhida e quente, mas ao mesmo tempo não estático (pela notação leve do movimento da chávena de chá) o que revela um olhar do pintor que já é, de algum modo, de realizador...
Columbano desenvolve o retrato, fazendo dele uma paisagem. Um pintor seu contemporâneo, António Carneiro ((1872-1930), que se dividiu entre a paisagem já das sensações e o retrato já ultrapassa o Naturalismo.
Se o Naturalismo pretendia colocar a nu todas as patologias sociais e, ao mesmo tempo, fotografar a natureza sem idealização, é em Columbano que podemos identificar, através do seu Antero de Quental (1889), um pathos que ceifou a nossa cultura artística Oitocentista: a morte antecipada. Da linha que iniciámos com o Camões de Garrett, e já bem próximo da paisagem-símbolo de António Carneiro, pintor e poeta, quando pinta o seu Retrato de Guerra Junqueiro (1907) ou o seu próprio Auto-Retrato (1918) o retrato de Antero, que podemos consideram um retrato do próprio pintor, por interposta pessoa, devolve-nos um ninguém! que não é de todo garretiano. É antes o único eco possível da nossa pintura. Columbano e Carneiro viveram rodeados de grupos de pensadores e poetas e vivem da angústia e do sentimento de decadência experimentados pelos seus companheiros. Se podemos associar Carneiro ao sentimento decadentista de Manuel Laranjeira, Columbano é o pintor de Antero. E é uma imagem de angústia e desespero, mais do que o próprio Antero de Quental, teorizador das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, do génio que era um santo, como Eça lhe chamou postumamente, Columbano fixa a imagem do fracasso assumido da Geração de 70, expresso n` Os Maias («falhámos a vida!»). Pálido e triste, na dor do seu cansaço da vida, vestido de cavaleiro andante que já entrou no palácio da ventura e lá encontrou silêncio, escuridão e nada mais, laica alegoria da desgraça e da descrença no homem, numa clara aproximação a algumas figuras atónitas de Velásquez, este Antero é a síntese de todos os não-lugares que passaram ao longo de um século pela pintura e literatura portuguesas. As possibilidades do Naturalismo português têm necessariamente de ser vistas a partir do seu mais moderno pintor — se os artistas não encontram um lugar no seu país, e se mesmo os poucos que beneficiam de uma formação em Paris ou em Roma não conseguem (ou não querem) pensar na tela o seu entendimento da paisagem, porque o público está entretido no São Carlos ou, como só poderia estar, no campo, entre o trabalho e as cócegas, o melhor retrato de um naturalismo que se passeia entre vários cemitérios, numa sarabanda de luz e de sombra, é o Antero de Columbano.



Bibliografia Consultada:

FRANÇA, José-Augusto
1990. A Arte em Portugal no Século XIX. Lisboa: Bertrand Editora, (1ª ed. 1967), ed. ut. 3ª ed., vols. I e II

ORTIGÃO, Ramalho
1896. «O Culto da Arte em Portugal», In Arte Portuguesa. Vol. I. Lisboa: Clássica Editora, 1ª Ed., 1943

SOARES, Elisa et. Al.
2001. Museu Nacional Soares dos Reis. Pintura Portuguesa 1850-1950. IPM, MNSR, 2ª ed.
Liliana Dias Carvalho

A propósito de Cinq Propositions Pour une Théorie du Paysage, de Augustin Berque

«Nem a cultura nem a sua destruição são eróticas; a fenda entre ambas é que se torna erótica. (...)
Talvez venha daí um meio de avaliar as obras da modernidade: o seu valor proviria da sua duplicidade. É necessário entender por isto que elas têm duas margens. A margem subversiva pode parecer privilegiada porque é a da violência; mas não é a violência que impressiona o prazer; a destruição não lhe interessa; o que ele quer é o lugar de uma perda, é a fenda, o corte a deflação, o fading que se apodera do sujeito no auge da fruição. A cultura reaparece como margem: sob qualquer forma.»
Roland Barthes.
[1]

A citação é longa mas necessária para compreender a ideia do autor e a forma como ela se pode integrar nesta reflexão. Para analisar Cinq Propositions Pour une Théorie du Paysage
[2], é necessário ter em consideração a ideia de duplicidade — a reflexão sobre o objecto artístico só é inteira quando analisada pelas duas margens de que fala Roland Barthes. E ainda que este autor aplique esta ideia a uma teoria do texto, e se insira numa corrente de análise estruturalista, é possível convocar a noção de «fading» para a análise dos cinco textos que compõem Cinq Propositions...
Apresentando uma visão fenomenológica de várias teorias paisagistas, Cinq Propositions Pour Une Théorie du Paysage remete-nos para cinco interpretações, de cinco autores com formações científicas distintas: da geografia à sociologia, da arquitectura paisagista à agronomia, passando pela filosofia, os ensaios que formam este livro estruturam-se em torno do conceito de movência. A paisagem é encarada como ser mutante: regendo-se por leis de entropia, está em permanente (re)invenção pela sociedade.
Como Augustin Berque afirma na introdução ao volume que dirige, paisagem e cultura do lugar são conceitos que, no século XX, se contaminaram, sendo hoje difícil destrinçar os limites inerentes a cada um, porque «le paysage ne réside seulement dans l`objet, ni seulement dans le sujet, mais dans l`interaction complexe de ces deux termes.» (Berque, 1994, p. 5). Consequência da evolução histórica do local, resultante da intervenção humana multissecular (contínua ou desfasada no tempo, incidindo num período histórico específico ou não), as teorias da paisagem reflectem necessariamente o clima, o solo, a morfologia urbana, o regime dos ventos, a vegetação, o trabalho do homem, as relações económicas e sociais, o valor histórico, artístico e cultural do local, os juízos sobre o belo e o feio, o sublime e o grotesco. A análise da escrita do lugar (topografia) — e sendo o objectivo do livro agir socialmente sobre a paisagem (Berque, 1994, p. 7), binoculando-a —, terá de reflectir todos estes elementos.
O artigo de Augustin Berque, geógrafo orientalista, desenvolver-se-á em torno do conceito de civilizações paisagistas e não paisagistas, o de Michel Conan, sociólogo, estrutura-se em torno da questão da articulação entre a identidade social e a paisagem enquanto que Pierre Donadieu, agrónomo, propõe uma linha de interpretação e acção para preservar as paisagens rurais e os paysans e Bernard Lassus, arquitecto paisagista, coloca dúvidas concretas sobre as interrogações de um arquitecto quando intervém num arranjo da paisagem. Já Alain Roger, filósofo e escritor, desenvolve o seu artigo em torno de um conceito criado a partir de um neologismo: a double artialisation (sendo a partir deste conceito que o autor reflecte sobre a existência da(s) paisagem(ns) e da sua história no Ocidente. Temos assim dois artigos com propostas concretas de intervenção na paisagem e três artigos de teor mais reflexivo. Comecemos então a sua análise...

O artigo de Augustin Berque, «Paysage, Milieu, Histoire», desenvolve-se a partir da relação entre o conceito de história e o conceito de meio-ambiente. O autor indica que existem civilizações paisagistas e não paisagistas
[3] e indica quatro itens para identificar as diferentes civilizações: uso de um ou mais vocábulos para dizer “paisagem”[4], uma literatura (de tradição oral ou escrita) que descreva as paisagens e cante as suas belezas, as representações picturais da paisagem e a existência ou não de jardins de recreio (Berque, 1994, p. 16). O primeiro destes critérios é o mais discriminativo e, segundo Berque, a história demonstra que ele implica todos os outros. Só a China, a partir do século IV, conseguiu conjugar os quatro critérios e depois a Europa, a partir do século XVI. A criação de uma proto-paisagem deve começar, no entender do autor, pela reflexão sobre estes quatro critérios e o seu uso na sociedade que se pretende estudar. A partir desta boa definição poderemos entender as causas que levaram os europeus a interessarem-se pela paisagem a partir do século XVI (que pela paisagem do país, do estrangeiro e também pela criação de paisagens imaginadas — lembremos que a Utopia de Thomas More é publicada em Basileia em 1516 e A Cidade do Sol, de Tomás Campanella, é sua contemporânea).
Se a paisagem à europeia (Berque, 1994, p. 22) é indissociável da modernidade é também a imagem da consciência de uma perda. A reflexão artística sobre a paisagem europeia comporta no seu cerne uma incompatibilidade fatal com a modernidade, o que, no século XX, terá como consequência o desaparecimento da paisagem na pintura das vanguardas a ponto de se reflectir sobre a morte da paisagem. A razão desta contradição interna deriva de, no entender autor, de a nossa civilização ser ao mesmo tempo paisagista e física — o interesse e a noção de paisagem e a revolução copérnica são contemporâneos, ou seja, a consciência da finitude da Terra e o interesse pela natureza descobrem-se ao mesmo tempo e «le monde de la physique, en tant qu`il este centré sur l`objet, n`a en principe aucun raport avec le point de vue du sujet. En cela, il est foncièrement étranger au paysage» (Berque, 1994, p. 23). A paisagem e o sentimento da natureza, desde os primeiros românticos à Land-Art contemporânea vão, de quando em quando, colocar-se em antítese a este profundo movimento da modernidade. A paisagem é tragectiva e não é, para Berque, nem um dado objectivo nem uma ilusão subjectiva. A Écoumène, conceito desenvolvido pelo autor (Berque, 1994, p. 25), consiste na relação da humanidade com o seu entendimento da terra. Se seguirmos o conceito de proto-paisagem que o autor propõe, constatamos que a época contemporânea é a mais rica no uso do vocábulo paisagem: vivemos em paisagens no nosso quotidiano, desde as paisagens urbanas, sonoras, políticas, de guerra (as imagens do 11 de Setembro fazem hoje parte do nosso inventário de paisagem, entendida no seu sentido mais literal: porção de território que se abrange num lance de olhos)... Cabe às utopias modernas dar à paisagem um sentido que nos motive e integre no mundo físico, tornando-o fenomenológico, (porque o indivíduo esta triplamente desintegrado: do seu ambiente físico, da sua relação com a comunidade matriz e mesmo do seu próprio corpo, pelo discurso da ciência e pelos objectos que o rodeiam) construindo um topos que una uma paisagem desirmanada com a nossa condição humana. Mas esta utopia não será incompatível com o projecto da modernidade? È que a clivagem aberta pela época moderna continua a dar sinais de ser, violentamente, cada vez maior...

O artigo de Michel Conan, «L`Invention des Identités Perdues» (Berque, 1994, p. 33), estrutura-se em torno da tentativa de criar uma nova reflexão sobre a paisagem e sobre o pensamento do paisagista. A ideia da paisagem como bem público, remetendo para um património fundador da existência de uma sociedade, é recente. Os grupos sociais que se exprimem a propósito da paisagem são bastante diversos mas, de um modo geral, juntam-se para defender um território de uma transformação (Berque, 1994, p. 35). O autor questiona a noção de assinatura da paisagem e a forma como se manifesta a simbólica colectiva da paisagem. Se a paisagem é um símbolo do grupo social reunido na sua apropriação pelas formas de experiência ritualizadas de um lugar, que tem a assinatura de uma identidade, o valor que lhe é atribuído é um símbolo dos ideais colectivos do grupo. Historicamente prova-se que as invenções de novas paisagens são fruto de uma rotura de um grupo social com um poder instituído. Os pintores da “escola” de Barbizon são um bom exemplo dessa rotura e dos caminhos que se abrem a partir dela: são eles que criam uma nova paisagem, justamente pela consciência que têm da sua perda. Quando olhamos para as suas pinturas invade-nos um sentimento de spleen: a euforia que o pintor nos transmite nas suas pinceladas é fruto de um olhar último (que se fixa na pintura) para o que irá, fatalmente, desaparecer. A época contemporânea é rica nas figuras do fim e a natureza, desde a Revolução Industrial, é uma dessas figuras. Nas palavras de Michel Conan, «Historiquement, de Théocrite à L`École de Barbizon, l`invention d`un nouveau paysage semble portée par un groupe social qui, bien que privilégié, est aussi soumis à des contraintes sociales nouvelles auxquelles il ne peut se soustraire. Ce furent dans le passé lointant des hommes de cour, puis au XVIIIe siècle des citadins ou des noubles en lutte contre le pouvoir royal, et au XIXe siècle des bourgeoisies urbaines en conflit avec des aristocraties foncières ou des proletáriats »(Berque, 1994, p. 40). Cada um destes grupos estava à procura de um país e de uma paisagem (que queriam ou não que fosse dominada pelo homem). A sociedade ocidental pensa na paisagem como metáfora (e precisa desesperadamente desta figura). Sendo uma invenção urbana (?), a paisagem actua como transporte para um outro mundo no qual existe ainda uma autenticidade que na cidade se perdeu: ir para o campo, encontrar paysans, é voltar a uma memória arquétipa que se está a perder (o um querer olhar ainda para a aura das paisagens). Walter Benjamin reflectia já em 1936 sobre a nossa pobreza cada vez maior em contar histórias maravilhosas ao mesmo tempo que somos todos os dias informados sobre o que acontece no mundo inteiro (Benjamin, 1992, p. 34), como se tivéssemos substituído a informação pela paisagem, por sabermos, pela informação, que ela existe
[5]... e, simultaneamente, temos uma necessidade diária de construir novas paisagens..
Michel Conan defende que para uma boa intervenção no território, o arquitecto paisagista (e, no entender do autor, deve ser um paisagista a intervir) deve conhecer profundamente não só o terreno como os grupos sociais que lá residem, de modo a que o arranjo, a invenção da paisagem seja coerente com o espírito do lugar bem como com a memória dos grupos.

Já Pierre Donadieu, em «Pour une Conservation Inventive des Paysages» (Berque, 1994, p. 53), artigo onde avança várias propostas técnica de organização do território, indica que a ideia de ruralidade encontra-se hoje no cruzamento de todos os caminhos de reflexão sobre a paisagem. As práticas de arranjo das paisagens rurais hesitam sempre entre as ideias de conservação e de desenvolvimento (como se fossem antónimos), oscilando entre um querer manter a memória da região e, em simultâneo, olhar para o futuro da região, criando estruturas económicas e sociais que impeçam a sua desertificação (e deixe de ser um lugar...). Donadieu interroga-se sobre se é proveitoso olhar para o planeamento do território rural e urbano da mesma forma (Berque, 1994, p. 53) se os espaços e as suas necessidades são diferentes. No entender do autor, o fim dos camponeses gerou o apocalipse das paisagens rurais caracteristicamente francesas. Para o agrónomo, uma paisagem é a consequência visível de um projecto ecológico, económico e técnico — não tem a sua raiz numa visão do mundo ou numa ficção (mas o olhar do agrónomo não é já um olhar particularizado, apesar do domínio da técnica?). Na ausência de utopias ou de mitos sobre a paisagem, na presença de um volte-face sistemático pelo poder e pela ciência (e pelo poder da ciência), a questão que urge colocar depreende-se com saber como é que a sociedade gere duas ordens antagónicas: a ordem social e económica e a ideia desejável que se faz (através dos discursos oficiais) da paisagem. A ausência de utopias modernas é a causa ou a consequência da dificuldade que hoje existe em reparar os projectos sociais integrados na paisagem? (Berque, 1994, p. 69) De onde vem então a ideia de paisagens ecológicas, de casas ecológicas?...

Bernard Lassus estrutura o seu artigo, «L`obligation de l`invention du paysage aux ambiances successives» (Berque, 1994, p. 83) em torno de vários projectos realizados pela sua equipa, colocando dúvidas concretas sobre o papel do arquitecto na construção da paisagem. Criar paisagens diferentes em diferentes ambientes é o maior projecto, e também o maior receio do arquitecto: como criar harmoniosamente uma paisagem inexistente ou como requalificar uma zona urbana ou marítima (como o porto de Estocolmo) que necessita de intervenção? O autor propõe uma intervenção na paisagem que conjugue elementos do passado integrados na intervenção do arquitecto, o que permite uma visão em continuum. A essência paisagista e, acrescentamos, a arte da paisagem, gere-se entre este entendimento (inteiro) da paisagem (Berque, 1994, p. 90), porque «le concept d`entité paysagére, ici en tant que nature, ne peut donc être abordé comme un problème seulement visuel. Il est de l`orde du symbole. Cela explique d`ailleurs l`importance que jouent les cartes dans les débats actuels sur les paysages. La carte représente en effet, par ses taches d`une certaine couleur, les surfaces et les formes de l`entité de nature associée à cette couleur.» (Berque, 1994, p. 95). Se a nossa representação do tempo evolui, também evoluem as formas de olhar e de ver. É difícil ao homem contemporâneo unificar discursos; fragmentada a sua visão, é também fragmentado o seu olhar e é por isso necessário entender que a literariedade da paisagem é concreta, mas também mítica. A primeira consiste em conservar a natureza nos seus processos biológicos; a segunda, na protecção das intervenções anteriores, de modo a que não se destrua tudo em nome do novo.

No artigo de Alain Roger, «Histoire d`une passion théorique ou Comment on devient un Raboliot du Paysage» (Berque, 1994, p. 109), é defendida uma noção que permite ligar os cinco artigos em torno de uma perspectiva : a double artialisation (Berque, 1994, p. 115). Para o autor, o país é o grau zero da paisagem, aquele que precede a artialização directa (in situ) e/ou indirecta (in visu). Um país não é, na sua essência, uma paisagem. Encontramos as paisagens do país através de uma mediação da arte (sendo através desta mediação que elas se tornam familiares ou naturais). Na esteira de Proust, Alain Roger defende que para um entendimento da paisagem é necessário que primeiro se proceda à sua leitura (à sua interpretação). Para Proust, o que torna A Primavera de Millet ou os quadros de Claude Monet é o que os quadros trazem consigo, «qual reflexo inatingível, a impressão que deram ao génio, e que nós veríamos errar tão singular e despótico sobre a face indiferente e submissa de todas as terras que tivesse pintado. Esta aparência com a qual eles nos cativam e nos decepcionam e para além da qual quereríamos ir, é a própria essência desse algo de certo modo sem espessura, — miragem parada numa tela, — que é uma visão.» (Proust, 1998, pp. 47-48). O dualismo país-paisagem (e Roger encara o corpo como a síntese desse dualismo) tem de ser encarado à luz da mediação artística no local (in situ) e no olhar reflexivo para as paisagens (in visu). Para o autor, a modernidade criou a paisagem por conseguir nesta época desenhar vários países. Sendo essencialmente uma invenção pictural, o seu entendimento alastrou-se para outros domínios (como o da literatura). O aparecimento da janela no quadro (e também na poesia) é a síntese da reflexão interior/ exterior.

O conceito de double artialisation defendido neste artigo por Roger é fulcral para compreender os restantes quatro artigos. Todos eles reflectem a tensão, mediada pela produção artística, entre o local e o nosso olhar (entre o in situ e o in visu). Resta aqui saber se a paisagem existe per si ou é uma construção mental do homem: numa época em que a morte é um tema que levanta uma reflexão cada vez maior (morte do autor, do romance, da arte, da paisagem...), a criação de uma teoria sobre a paisagem que conjugue a arte e a técnica, onde é possível olhar para a fenda deixada pelas duas margens de análise de que fala Barthes, «nostalgie d`un Eden perdu et volunté de travailler en vue d`un monde meilleur » (Thibergien, 2001, p. 18) é talvez uma tentativa de olhar para a fenda deixada aberta pelos projectos da modernidade e analisá-la não pelo sentiment de la nature tão caro ao espírito romântico, mas pela estetização de um olhar sobre um lugar de uma perda.
[1] Roland BARTHES. O Prazer do Texto. Tradução Portuguesa de Maria Margarida Barahona, Lisboa: Ed. 70, 1997, pp. 40-41
[2] Augustin BERQUE (dir.). Cinq Propositions pour une Théorie du Paysage. Seyssel, Champ Vallon, 1994
[3] Ideia que A. Berque retoma noutros livros, nomeadamente em Les Raisons du Paysage. Editions Hazan, 1995
[4] Nas línguas latinas, o termo aparece no século XVI em Francês. País e Paisagem derivam (por empréstimo) de Pays e Paysage. Cf. José Pedro MACHADO. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa,: Livros Horizonte, 3ª ed. 1977, Vol. IV, p. 281
[5] Seria interessante reflectir sobre o fascínio contemporâneo pelo deserto (durante muito tempo olhado como um não-lugar), mas não cabe aqui discorrer sobre esse assunto.


Liliana Dias Carvalho

O Utópico Convívio entre a Câmara e a Pena - A Selva entre Ferreira de Castro e Leonel Vieira




«Le paysage ne réside seulement dans l`objet, ni seulement dans le sujet, mais dans l`interaction complexe de ces deux termes.»

Augustin Berque

Em dois dos livros de Roberto Nobre sobre cinema – Horizontes de Cinema[1] e Singularidades do Cinema Português[2] -, são várias as referências que defendem o potencial cinematográfico da obra de Ferreira de Castro. O próprio romancista, indica-nos Nobre, dirigiu, na altura em que era jornalista em O Século, «em estilo vanguardista, as filmagens de um curto documentário, realizado para lançamento de um concurso daquele diário, chamado Estátuas de Portugal, película que se perdeu»[3]. Nobre indica ter visto a exibição desta película no cinema Condes.

Para além desta experiência cinematográfica, diz-nos também o autor de Singularidades que Castro, «nos seus tempos de jornalista militante, foi dos que, inicialmente, inicialmente em Portugal escreveram sobre cinema nos seus significados social e de obra de arte»[4] no tempo dos cine-romans, época áurea do folhetim cinematográfico. O plot do filme ia sendo contado à medida em que saiam os jornais e magazines.

O escritor de A Selva fez parte destes screen-writers dos anos 20 portugueses e estamos em crer que este registo terá em parte influenciado o seu percurso enquanto escritor, nomeadamente de Emigrantes e A Selva.

Falar das relações do cinema com a literatura não será exactamente o mesmo que falar das relações da literatura com o cinema, mas ambas existem. O que arrisco aqui dizer em relação a A Selva de Ferreira de Castro é que é possível encontrar, a par de uma estrutura diegética perfeitamente montada pelo autor, também uma estrutura imagética – onde podemos encontrar um olhar cinematográfico do romancista.

Creio que esta afirmação ganha algum relevo se pensarmos que na altura em que Castro escrevia o romance que aqui nos ocupa – A Selva -, tinha também a seu cargo a escrita dos cine-romans e era, com Roberto Nobre, um espectador acérrimo de cinema.

Talvez possa estar aqui um dos muitos motivos para a forte apetência que muitos realizadores de cinema sentiram para adaptar A Selva à linguagem da tela branca, logo nos anos 30.

Roberto Nobre desvenda-nos algumas histórias dos projectos não realizados de adaptação do romance e de um que terá sido realizado, segundo Nobre, à revelia do romancista, tendo até a particularidade de utilizar o Ribatejo e a serra de Sintra como cenários da Amazónia e os campinos ribatejanos como seringueiros. Terá sido realizado como película represália, uma vez que o realizador Max Nosseck (1902-1972)[5] pretendeu ter, a troco do pagamento de 20% dos direitos da obra a Ferreira de Castro, total liberdade para adaptar A Selva, cedência que Ferreira de Castro não fez: «Max Nossek (então aureolado com o êxito americano do seu filme Dilinger), que se deslocou a Portugal com a sua esposa, a escritora especializada como argumentista de filmes para Hollywood, de nome Geneviève Haugen. Vieram estudar a adaptação com o próprio autor, pois aí estava a dificuldade.

(...) A empresa norte americana representada por Nossek exigia afinal liberdade absoluta de adaptação, com o que Ferreira de Castro não concordou. Pretendiam transformar o romance em filme de aventuras na selva (...).

Nossek, desesperado, mandou a H. Da Costa um ultimato para que ameaçasse o autor de que, se não transigisse, iam fazer uma outra película sobre aquela mesma selva, sem ser com o argumento extraído da obra. Ferreira de Castro não transigiu e respondeu, sorrindo a H. da Costa que nunca tinha movido em sua vida qualquer processo a alguém, mas que, naquele caso, se tal filme futuro contivesse qualquer passagem do seu livro, então seria a primeira vez.

Consequência pitoresca: Nossek, afinal, sempre veio a fazer a tal película represália, com aventuras na “selva amazónica”, mas os exteriores foram filmados... em Portugal, ali na Borda d`Água do Ribatejo, com o nosso ameno rio mascarado de imponente Amazonas em em que os nossos campinos foram utilizados como... seringueiros. Nossek, que nunca vira uma floresta virgem, foi filmá-la na mata nacional de Sintra, que é, de facto, uma bela floresta, mas nada tem de virgem. Confesso um fundo desgosto de não ter visto exibidos cá tais prodígios. Assim não sei se meteu os saloios dos morangos a fazer de índios paratintins...»[6].

Acompanhamos Nobre nestas ironias do desgosto cinéfilo. Para além deste caso verdadeiramente exemplar, que nos aguçou uma curiosidade detectivesca – tentar saber onde parava esse filme dos anos 40. Encontrámos Kill or Be Killed (1950), cujo argumento nada tem a ver com o romance de Castro, mas que conta com actores portugueses (João Amaro, Lopes da Silva, Mira Lobo, Leonor Maia e Licínio Sena) – é o tal filme de aventuras na selva que Nosseck pretendia realizar.

Dos projectos de adaptação cinematográfica de A Selva, podemos hoje ver duas realizações: a primeira de 1971, por Márcio de Souza, ainda em vida de Ferreira de Castro; a segunda, de 2002, numa co-produção entre Portugal, Brasil e Espanha. Esta segunda adaptação tem já lugar na história do cinema português pois foi, até à data, a maior produção cinematográfica realizada e a que mais espectadores levou às salas portuguesas de cinema. Foi talvez uma das poucas vezes em que um filme português não passou à margem do público. Gostando ou não do filme, julgo ter sido saudável a discussão levantada por um filme que foi visto.

Leonel Vieira (1969) é oriundo de uma zona geográfica onde ainda são bem visíveis os efeitos da emigração para o Brasil. No norte de Portugal, a maioria das localidades tem na sua história social, cultural e urbana, um caso de “brasileiro torna-viagem”. Seja através de trechos literários, encomendas escultóricas, histórias de emigrantes que regressam e encomendam os seus “palecetes de azulejo com mirantes”, a figura do “brasileiro” faz parte da memória local.

O realizador português demonstra um conhecimento empírico das razões pelas quais Portugal e o Brasil estão profundamente ligados. Talvez por isso tenha existido o magnetismo pelo universo castriano. Hoje, o Portugal emigrante volta a aparecer como um dos mais próximos da nossa verdade. Talvez sem essa intenção, o filme de Leonel Vieira contribuiu para o tema da emigração no cinema português.

Se na primeira adaptação de A Selva (1971), é preponderante um olhar etnográfico do realizador, na segunda o olhar do realizador português procura dar-nos a ver toda a memória de uma paisagem afectiva que soube interpretar do universo de Castro. Uma outra memória, a da experiência estética vivida pelo realizador aquando das suas deslocações à Amazónia para desenhar o filme, procurando fragmentos que transmitissem uma imagem de permanência entre o tempo e a paisagem descritos no romance.

Tanto no filme como no livro, a paisagem é personagem, tempo e espaço numa só entidade – a da selva. As personagens, até pelo vestuário, estão camufladas na floresta.

Ferreira de Castro poderia não ter concordado com esta adaptação de A Selva, por todos os motivos que aparecem como crítica ao filme: alguma cedência à indústria do cinema ou argumento pouco desenvolvido para melhor exploração do carácter dos personagens. Leonel Vieira talvez lhe respondesse, como lemos numa sua entrevista ao jornal Público, que «o cinema são imagens» e a sua intenção não era fazer um documentário do livro[7].

Se não existir outro qualquer lugar de diálogo entre o livro e o filme, certamente ele existirá no agora criado Museu do Seringueiro, no local onde se construíram espaços cenográficos efémeros para fazer a rodagem do filme. Permaneceu montado o espaço que hoje acolhe a memória dos “brabos”, a quem Ferreira de Castro deve A Selva.



[1] 1ª ed., Guimarães, de 1939

[2] 1ª Ed., Portugália, 1964

[3] In Singularidades, p. 231

[4] Idem, p. 231

[5] Realizador polaco residente nos Estados Unidos da América, com a particularidade de ter trabalhado em Portugal nos anos 30 com Arthur Duarte e António Lopes Ribeiro, tendo realizado com este último a película Gado Bravo (1933). Representante do género film-noir, pelo seu Dillinger (1945). Realizou também Le Roi dês Champs-Élises (1937), com Buster Keaton como actor.

[6] Ibidem, pp 234-236

[7] Cf entrevista ao Jornal Público, de 12 de Julho de 2001

Liliana Dias Carvalho